Mário Cláudio foi o convidado da
quarta edição de”Na Minha Terra Cabe o Mundo Todo”, evento promovido pela ACARF
e pela Associação Mar Uno, iniciava que bem por objetivo homenagear um
escritor/artista da língua portuguesa e promover o contacto entre os autores e
o público. Dando continuidade à tradição, O Forjanense esteve à conversa com o
escritor Mário Cláudio, pseudónimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, nascido a
6 de novembro de 1941, no Porto, que acedeu a partilhar com os nossos leitores
a sua experiência pessoal e de escritor.
O Forjanense (OF): Mário Cláudio apresenta uma tendência para
“biografar”. Permita este início de conversa mais biográfico. Rui Manuel Pinto
Barbot Costa fez o curso de Direito, mas advogou pouco tempo. O que o levou a
escolher este curso? Por que razão mudou a sua orientação profissional?
Mário Cláudio (MC): A escolha de
Direito não foi propriamente uma escolha minha, foi mais uma escolha familiar.
Na altura era muito difícil aos jovens determinarem o seu futuro em termos
profissionais, pois no final do liceu havia uma bifurcação de carreiras: ou ia
para Ciências ou para Letras, que era aquilo a que eu estava mais propenso, que
necessariamente conduziam ou a um curso de Filosofia ou Literatura da Faculdade
de Letras, ou ao curso de Direito. E, nessa altura, a questão que os meus pais
me colocaram foi que o curso de Letras conduzia necessariamente ao ensino, que
na altura não era uma carreira muito promissora, e se tirasse o curso de
Direito podia ter um futuro mais animado, mais proveitoso em termos
financeiros, etc. Deixei-me influenciar por isso, fui para o curso de Direito.
A meio ainda tive várias hesitações, pensei várias vezes em desistir, pensei ir
para o curso de Clássicas, que era o curso que eu gostava de ter tirado porque
me interessava o latim e o grego. Mas não foi possível, não porque os meus pais
me impusessem isso, mas porque eu sabia que qualquer decisão minha nesse
sentido ia ser um pouco penosa para o meu pai. Levei o curso de Direito até ao
fim, classifiquei-me relativamente bem e continuei a cultivar as letras noutros
espaços, nas horas vagas. Só depois abracei definitivamente aquilo que hoje
posso chamar uma carreira, uma carreira na literatura. Entretanto, acabei por
me diplomar como bibliotecário-arquivista, fiz o mestrado na Universidade de
Londres, que possibilitou uma espécie de ponte entre o Direito e a Literatura.
E depois foi só a Literatura, embora tivesse trabalhado até à reforma como
técnico superior no Ministério da Cultura, sempre ligado à área do livro, da
atividade literária.
OF: Quando surge “Ciclo de Cypris”, em 1969, aparece com o pseudónimo
Mário Cláudio, que mantém em toda a sua obra. Porquê a necessidade desta
identidade? Corresponde a uma orientação literária ou é um nome meramente
casual?
MC: A escolha do nome é casual,
não há nenhum segredo. A razão pela qual escolhi um pseudónimo foi porque, na
altura em que publiquei o meu primeiro livro de poesia, eu suponha ou admitia
que podia ter uma profissão na área do Direito, como advogado. Pensei nisso
porque muita gente me dizia que um advogado não era propriamente muito bem
quisto, bem visto, porque o mundo jurídico exigia, nessa altura, um espírito
pragmático, que não joga muito bem com a experiência poética. Eu optei por
utilizar um pseudónimo, só que o pseudónimo atirou-se a mim e transformou-se no
meu nome.
OF: Li numa entrevista estas palavras: “Tenho memória de mim a escrever
desde que sei escrever”. Até quando recua essa memória e quando é que o ato de escrita
se tornou uma necessidade de vida e orientação profissional exclusiva?
MC: Recua a uma fase muito
infantil. Lembro-me que o primeiro texto de ficção que escrevi foi um texto
muito curto, de que não guardo memória, em torno de figuras que tinham sido
inspiradas pela leitura de livro “O Feiticeiro de Oz”, na moda na classe média
a que eu pertencia e que deu origem a um filme e seria como o Harry Potter de
hoje. A partir daí escrevi um texto, um pequeno conto, e é aquilo que eu
recordo como a mais antiga experiência de escrita, tinha 9 ou 10 anos. Mas há
uma outra fase, por volta dos 13/14 anos, em que me lembro de ter escrito um
poema que ainda conservo. Senti que esse poema era o início de uma atividade de
escrita, que poderia ser profissionalizada ou não, que podia ser ou não
transformada numa carreira, mas que eu nunca mais abandonaria. Senti isso numa
tarde de fevereiro quando escrevi o poema, tenho perfeita noção disso.
OF: Essa primeira obra de 9/10 anos não foi publicada?
MC: Não foi publicada e foi
perfeitamente espontânea. No entanto, durante o período da escola primária, fui
sempre muito estimulado porque os professores achavam que as minhas redações
eram muito boas, eram excecionais em relação àquilo que as outras pessoas
faziam, tinham sempre um elemento muito inovador. Digamos que me projetava
nelas, inseria nelas muito a minha natureza, pois empenhava-me naquilo que fazia
quando se tratava de redação, o que não acontecia com outros exercícios, claro,
designadamente com a aritmética e as outras coisas todas, que eram feitas mais
por obrigação.
OF: Há quem afirme que tem “uma prática quase monástica no exercício da
escrita”. Isto deve-se à imposição do trabalho de escrita ou apenas à sua forma
de ser, à necessidade de introspeção?
MC: A área monástica foi sempre
para mim uma atração e senti que esse caminho correspondia a uma exigência de
rigor da minha parte, de austeridade e sobretudo de disciplina, disciplina no
quotidiano, e é aquela que eu procuro manter na minha escrita. Tenho uma prática
de escrita diária, com horas certas ou mais ou menos certas. Quando não a
cumpro, sinto-me (como suponho que se sentem os monges) um pouco culpabilizado.
Procuro obedecer a isso, estar presente nessa exigência que eu faço a mim
próprio. Depois, na própria escrita em si, procuro conciliar sempre uma certa
sensualidade mística. Abracei a escrita como um projeto de vida, em que as
emoções deviam estar permanentemente enquadradas num determinado tipo de
racionalidade. E pensei sempre que a minha escrita tinha de ter essa tensão
entre o conteúdo e a forma, que é, no fundo, a tensão da vida, a tensão entre a
sensualidade da vida, aquilo que nós vive-mos diariamente a nível dos cinco
sentidos, e a consciência da existência de um outro, uma transcendência, um
absoluto, que faz com que isso nos apareça como uma ilusão ou como uma
limitação, e nos indica que é para outro plano que estamos vocacionados.
OF: Esse misticismo deve-se ao facto de ser um homem religioso? Como é
que essa dimensão condiciona a sua visão do mundo e a sua escrita?
MC: Tem a ver uma coisa com a
outra. Eu sou um homem religioso, mas gosto mais de me definir como um homem da
sacralidade, que tem a consciência mais ampla da transcendência, que não reduz
a religiosidade a opções de tipo clubístico ou corporativo, mas visa para além
disso. Para mim, o que é importante é a presença do absoluto, de Deus,
independentemente da maneira de chegar lá. No entanto, sei que a maneira de
chegar lá é uma porta estreita (tenho consciência disso!) que exige disciplina,
exige rigor, uma grande coragem, exige um grande despojamento, exige um grande
esforço de libertação de tudo aquilo que nos condiciona. Sinto isso,
independentemente de saber se o Deus se chama Alá ou se chama Jeová ou o que
quer que seja.
OF: Pode ler-se na página do Projeto Vercial que “Criou um heterónimo,
o poeta Tiago Veiga, hipotético bisneto de Camilo”. Embora lhe tenham feito
algumas vezes esta pergunta, tendo em conta que não há registo histórico da
existência desse poeta, não resisto a insistir: esta biografia corresponde à
criação de um heterónimo, o alter ego de Mário Claúdio?
MC: Tenho dificuldade em
responder a essa questão. A dificuldade resulta de uma razão de carácter
epistemológico, que é saber o que é da área da Literatura e o que é da área da
História. Muitas vezes é difícil estabelecer essa diferença. Nós falamos do
romance de Camilo e falamos dos romances de Camilo. A imagem que nós temos de
Camilo Castelo Branco é uma imagem construída, provavelmente não corresponderá em
80% à realidade daquilo que ele era. Depois tem os romances que ele publicou.
Aqui também temos um fenómeno idêntico. Agora, se me disser que o nome dessa
figura foi inventado, eu digo-lhe que sim, que foi inventado, mas a figura não
foi, corresponde a uma figura do inconsciente coletivo português porque é uma
figura real. A realidade dessa figura em termos de registo civil é contestável,
era preciso que alguém fosse ao Rio de Janeiro, onde ele nasceu, verificar o
registo, se lá está registado ou não.
OF: A sua obra tem sido escolhida como objeto de estudo para teses de
mestrado e doutoramento. Vê nisso a sua consagração como escritor por parte dos
académicos, corroborando a consagração dos leitores?
MC: Nessa área tem havido
surpresas muito agradáveis. Nunca tive, e espero nunca vir a ter, surpresas
desagradáveis. Há dois países, sobretudo, em que isso tem acontecido: um é
Itália, em que tenho sido muito estudado, e outro é o Brasil. Os estudos que me
têm dedicado as universidades brasileiras, de todo o território brasileiro, a
Federal do Rio de Janeiro e mesmo de pequenas universidades, têm-me posto em
contacto com pessoas que (e isso para um autor é muito gratificante) manifestam
uma enorme paixão por aquilo que eu escrevo, seja essa paixão justificada ou
não. Mas sinto que essas pessoas estão em contacto comigo, que me respeitam (é
bom ser respeitado!), que me admiram e reconhecem alguma qualidade naquilo que
eu faço. Em Itália também sinto o mesmo (nos outros países sinto menos, como em
Espanha, França, etc.). Tanto em Itália como no Brasil há uma espécie de
contínuo de teses que vão passando até de gerações de professores para outras
gerações de professores como orientadores dessas teses. O que me dá ideia de
que há ali uma certa vitalidade na minha obra que se mantém, não sei por quanto
tempo, se calhar até por um tempo escasso, mas que está lá.
OF: Mário Cláudio é reconhecido como um grande escritor, o que é
atestado pelo elevado número de prémios recebidos. Considera este
reconhecimento importante? Qual o prémio que considerou mais significativo?
MC: Em relação a isso tenho a
dizer que nunca me coloquei na posição de rejeitar um prémio, porque acho que
só um escritor muito grande é que se pode colocar nessa posição, um pouco
arrogante, de dizer “eu não aceito isto”. Eu aceitei com alguma humildade estes
prémios todos, e aceitei, devo dizer, com bastante alegria, por uma razão muito
simples, porque 80% desses prémios não tiveram a ver com a minha inscrição
geográfica, pois sou um homem daqui do Porto, a residir no Porto, no Norte,
afastado do mundo literário da capital. Portanto, se mereci esses prémios é
porque eles vieram ter comigo. Nunca mexi nenhum cordelinho para ter um prémio.
Nunca houve da minha parte qualquer estratégia de manipulação dos poderes dos
prémios ou do júri para que me fossem atribuídos. Se os atribuíram foi porque
acharam que deviam ser atribuídos. Isso foi importante.
Em relação à outra pergunta que
me fez, foram de facto prémios que me marcaram muito, alguns por razões de
ordem afetiva, outros de ordem, digamos, profissional. O prémio que me marcou
mais, no início da carreira, foi o prémio de Romance e Novela da Associação
Portuguesa de Escritores que, nessa altura, tinha uma relevância muito maior.
Hoje já ninguém fala desse prémio, mas no início da década de 80, quando o
prémio foi criado, era um prémio importantíssimo, porque não havia outros. Era
o Grande Prémio da Literatura Portuguesa. O primeiro galardoado foi o Cardoso
Pires, no ano seguinte foi a Agustina Bessa-Luís e no terceiro ano fui eu, que
era um jovem. Foi muito estimulante para mim ter acontecido nessa altura, pois
foi uma espécie de empurrão, que foi muito útil e vantajoso para mim. Outro
prémio que me marcou muito, por razões de ordem afetiva, foi o Prémio Vergílio
Ferreira, porque conhecia muito bem o Vergílio Ferreira, fui amigo dele e
respeitava-o muito. O Vergílio Ferreira foi das primeiras pessoas a reparar em
mim, dizendo posteriormente, nas páginas da Conta Corrente, no Diário, que eu
era um dos grandes valores da geração seguinte. Não sei se isso se confirmará
ou não, mas disse isso. Portanto, sentia-me muito grato a ele por isso. Além do
mais porque o Vergílio Ferreira era um homem com quem eu tinha conversas muito
idênticas a estas que tenho estado a ter aqui convosco, falávamos muito de fé e
questões de transcendência, etc. Ele dizia muitas vezes que tinha inveja de mim
porque eu tinha esse posicionamento crente e ele não tinha. Embora tivesse
feito um percurso pelo seminário, perdeu a fé e dizia isso: “eu tenho inveja,
tenho inveja”. E eu sentia isso e que o facto de ele ter inveja de mim era
sinal de que já havia ali qualquer coisa, de que ele queria acreditar. Querer
acreditar, de alguma forma já é acreditar. É a velha frase de S. Paulo: se o
procuras, já o encontraste. E isso acontecia com Vergílio Ferreira.
O outro prémio que me marcou,
porque foi um prémio importante, foi o Prémio Pessoa, necessariamente, que
apareceu numa fase avançada da minha vida, em que era já um escritor maduro.
Tinha atrás de mim duas ou três figuras (já não me refiro às de outras áreas
mas às da literatura) que tinham merecido esse prémio e lhe criaram um enorme
prestígio, e vim inscrever-me, não digo com orgulho, mas com muita alegria, com
muito reconhecimento também.
OF: Alguém se referiu a Mário
Cláudio como um “cronista de costumes” (www.dglb.pt/sites). Como vê a sociedade
atual e que papel a literatura nela deve assumir?
MC: Essa pergunta implica que eu
tenha necessariamente uma resposta moralista ou moralizante, que não é o meu
caso. Não sou escritor de moralização, não sou moralista de coisas nenhumas.
Limito-me a olhar para o mundo e a registá-lo na forma direta ou indireta, mais
ou menos superficial nos textos que escrevo. Mas se quiser que lhe diga o que
eu sinto neste momento relativamente ao mundo é um mal-estar muito grande, um
grande encortinado, a sensação de que não estamos a ir para lado nenhum, a
sensação de que estamos à espera de uma espécie de nó que nunca mais está a ser
desatado. Não há ideologias, não há figuras de referência. Sinto isso como
nunca senti ao longo da minha vida. E há outra coisa que resulta do meu
quotidiano, em termos daquilo que se passa no nosso país. Cada vez que eu primo
o botão do televisor para ver o noticiário e aparece o noticiário português,
imediatamente passo a outro porque já sei o que vou encontrar: a imagem de
misericordismo, de desistência, um certo sadismo nas notícias constantes: o que
diminui, o que aumenta, as taxas baixas, os cortes, a corrupção, as pedofilias,
etc. Não me revejo nesse mundo, esse mundo não tem nada a ver comigo. Por isso,
rumo rapidamente ao canal Arte, que é um dos meus canais favoritos, onde às
vezes acontecem coisas muito interessantes, ou o canal de História, ou o Odisseia,
ou até Hollywood. Prefiro de facto fazer uma operação do tipo da avestruz, de
esconder a cabeça debaixo da terra, mas eu acho que é legítimo fazer essa operação
quando o que está à vista, se não fizer essa operação, é entrar completamente
em parafuso e passar ao nível dos neuróticos.
OF: Numa sociedade que parece pouco preocupada com a dimensão cultural,
que leitura faz da iniciativa “Na minha terra cabe o mundo todo”?
MC: Bom, isso é um caso exemplar.
Também não conheço outro igual, não conheço outro exemplo de atitude, de dar
mimo aos escritores como vocês têm aqui. É uma voz que está a clamar no
deserto. Há uma coisa que eu tenho de dizer aqui: um escritor tem muito pouca
área de intervenção no contexto em que o próprio estatuto de escritor é
extremamente vago. Portanto, quando sabemos que qualquer apresentador de
televisão, qualquer “bobo da corte” escreve um livro e direta ou indiretamente
se intitula de escritor, perguntamo-nos “afinal quem é que é escritor?”. Se não
soubermos isso, não sabemos que papel tem o escritor. Se nos interrogarmos
sobre o papel que desempenham essas pessoas no mundo que temos, verificamos
isto: que esses que se consideram escritores são precisamente aqueles que fazem
todos os possíveis para que o mundo seja a merda que é hoje.
OF: Passemos agora a falar especificamente da sua obra. Mário Cláudio
tem uma obra multifacetada, passando pela poesia, teatro, ensaio, ficção. Mas
parece haver uma certa predileção pelo romance. A que se deve?
MC: Não há uma predileção minha,
o romance é que me escolheu a mim. É a área em que eu posso ter mais coisas
interessantes a dizer. As outras áreas, embora paralelas e cultivadas,
mantêm-se sempre marginais em relação àquilo que é a minha prática, digamos,
mais sustentável, que é a escrita de ficção.
OF: Quando em 2004 recebeu o Prémio Pessoa, uma das características
apontada pelo júri e unanimemente reconhecida pela crítica é a “mestria da
língua” e “uma impressionante riqueza de vocabulário”. Quem foram/são os seus
mestres?
MC: São os mestres de sempre.
Aqueles que, infelizmente, têm vindo a ser esquecidos ou até algumas vezes
mesmo insultados e que são os mestres de sempre. Sem pretender pôr-me no mesmo
plano, mas no do discípulo, eu diria que esses mestres foram Frei Luís de
Sousa, Luís de Camões, Padre António Vieira, Camilo Castelo Branco, Aquilino
Ribeiro, Agustina Bessa-Luís. É esse o correio em que eu me inscrevo e em que
eu espero continuar a ficar. Não me interessam outros.
OF: Este perfecionismo com a língua não poderá levar a um certo
hermetismo, afastando alguns leitores, ou poderá antes funcionar como
pedagogia, levando a leitores mais cultos e linguisticamente mais exigentes?
MC: Eu não tenho que me preocupar
muito com isso, mas antes com aquilo que tenho de escrever e no momento em que
tenho de escrever. Se realmente as pessoas acham que aquilo que eu escrevo é
algo hermético, essas pessoas ou repõe o livro na prateleira ou vão tentar
decifrar o que é esse hermetismo. O que é um dos direitos do leitor! Mas a
verdade é esta: eu acho que a língua portuguesa é um extraordinário manancial
que é uma pena desperdiçarmos. É como se fosse um teclado de um piano, de um
órgão, em que todas as teclas devem ser tocadas. Tocar só as teclas do meio é
empobrecedor. Portanto, há teclas que só de longe a longe são tocadas, mas têm
de ser tocadas. Por exemplo, em termos lexicais ou vocabulares, têm de ser
tocadas. Não se faz isso de uma maneira programada, mas é natural que se toquem
essas teclas para que elas façam parte daquilo que é o líder quotidiano da
língua portuguesa, para que ela não se atrofie numa meia dúzia de vocábulos que
se repetem constantemente e que não dão origem a coisa nenhuma. Eu não tenho
qualquer propósito de servir um objetivo didático. Não quero ensinar nada às
pessoas, quero apenas convidar as pessoas a gostarem daquilo que eu gosto. No
fundo é aquilo que nós fazemos nos nossos interstícios de amizade e amor, que é
integrar aqueles que amamos e que são nossos amigos no mesmo universo de
interesses e de gostos. Se não gostarem, não é por isso que deixam de ser
nossos amigos, mas sentimo-nos muito mais próximos daqueles que têm afinidades
connosco. É isso: como autor, tenho direito a escolher a família de leitores,
como os leitores têm direito a escolher os seus autores. E é nessa base que as
coisas se jogam.
OF: Ao atribuir-lhe o Prémio Pessoa, o júri salientou a “tentação
biográfica”. Que personalidades são “biografáveis” para Mário Cláudio?
MC: Todas. Não há nenhuma
personalidade que não seja biografável, a começar por qualquer de nós. Qualquer
um de nós aqui presente tem uma vida fascinante. O que é preciso é saber por
onde se entra, como se vê, de que ângulo é que se vê. Neste momento estou a
escrever uma biografia, que me foi encomendada (que eu hesitei muito em aceitar
e depois acabei por aceitar), de uma senhora que é presidente de uma câmara
municipal deste país (e que vai agora sair definitivamente), das grandes
câmaras do país da esquerda (mas não foi por isso que eu aceitei!).
Aparentemente aquela mulher só tem uma biografia pública, feita de
inaugurações, abertura de congressos, reuniões, obras públicas, educação,
saúde, etc., tudo aquilo que faz parte da área da autarquia. Mas por trás disso
há uma mulher com um coração e com uma alma. E para mim foi muito importante
descobrir esse coração e alma. Provavelmente ninguém se tinha chegado dessa
forma a essa mulher, que é considerada uma espécie de estátua pública. No
primeiro contacto que tive com ela, em que a abordei na perspetiva da alma e
coração, ela desfez-se em
pranto. São essas figuras que me interessam, que têm o ser e
têm o fazer. Não é só o fazer que faz as pessoas, é mais o ser, ou é a tensão
entre o ser e o fazer.
OF: Em várias das suas obras empenhou-se na “homenagem e divulgação de
importantes figuras da cultura portuguesa”. Mas parece impor-se uma certa
predileção por figuras do norte, como “Trilogia da Mão” (1993), em que “abordou
a vida e obra de figuras artísticas nortenhas”, “Duas histórias do Porto”
(1986), Tiago Veiga, uma biografia (2011), “Camilo Broca” (2006). A que se deve
esse facto? Não há figuras biografáveis no sul?
MC: Já referi que estou a
preparar a biografia de uma autarca que é do sul, de Almada. Também fiz
relativamente há pouco tempo uma minibiografia de uma fase da vida de Fernando
Pessoa quando escrevia uma novela intitulada “Boa noite, Sr. Soares”, em que
procurei historiar o relacionamento de Fernando Pessoa com outras pessoas. Também
aconteceu isso num livro meu chamado “Gémeos”, em que aparece o Goya. Portanto,
não são só figuras do Norte. Mas, em Portugal, reconheço que há uma prevalência
de figuras do norte do país nas minhas obras, porque eu vivo no Norte e estou
mais ligado a elas.
OF: Ao agraciá-lo com a comenda de Cavaleiro das Artes e Letras, em
2006, O Ministério da Cultura francês, através do Consulado no Porto referiu
que “Com esta condecoração, recompensa-se um dos grandes mestres da literatura
portuguesa, um escritor prolixo (…), autor de uma obra rica e densa que
transcende a portugalidade que tão bem revela para ganhar a arte da universalidade”.
Reconhece-se aqui uma das dimensões da sua obra, a portugalidade, mas afirma-se
a sua dimensão universal. O que é necessário para que se atinja este patamar
literário?
MC: São necessárias duas coisas:
uma é a qualidade da obra, evidentemente indiscutível (e eu não sei o que
determinou isso); a outra é a mobilidade, a necessidade de as pessoas irem aos
sítios. Há muitos escritores portugueses que são conhecidos internacionalmente
porque têm essa mobilidade, que eu não tenho, por uma razão simples: tenho medo
de andar de avião. Mas o José Saramago, que não tinha esse medo, dizia sempre
uma frase que nunca esqueci, e acho que é oportuno recordar agora: “aquilo que
tiver de me vir ter às mãos vem”.
OF: Já que fala em
José Saramago, li numa página da internet que afirmou que o
Prémio Nobel da Literatura deveria ser atribuído ao Lobo Antunes e não ao José
Saramago, mas que não era por uma questão pessoal. É essa a sua opinião?
MC: Sim. Fui amigo do Saramago,
dei-me sempre muito bem com ele e cheguei a dizer-lhe que achava que o prémio
devia ter sido para António Lobo Antunes. E isso não fez de nós inimigos. Assim
como acho que há outras figuras da Literatura Portuguesa do passado
relativamente recente que deviam ter tido esse prémio: o Torga, o Aquilino, a
Sophia de Mello Breyner, ou até David Mourão-Ferreira, uma figura claramente
europeia, que foi um grande escritor não só na área da poesia mas também de ficção
e ensaio. Mas essas coisas são sempre um pouco aleatórias, acontecem quando têm
de acontecer, (é como a eleição dos papas!).
OF: Ainda a propósito de Saramago. Apesar de ser um laureado do Prémio
Nobel, muitos classificam a escrita de José Saramago como de difícil leitura,
sobretudo para quem tem pouco treino nessa área e se inicia na sua leitura. Acha
que ele deve continuar a ser um dos autores dos programas de português?
MC: Considero José Saramago um
grande autor, um ficcionista de grande qualidade. Nunca achei a escrita dele
particularmente difícil, mas compreendo que seja difícil para a maior parte das
pessoas. Mas fi co muito irritado quando as pessoas me dizem: “ele não sabe
escrever, não sabe usar a pontuação”. Eles não conseguem perceber que é uma
estratégia, pois se alguém sabia escrever, era ele. É a mesma coisa que as
pessoas que assistiram às primeiras audições das obras do Stravinsky e diziam
que ele não sabia escrever música porque não escrevia como o Beethoven ou o
Mozart. Em relação ao Saramago, acho que é um grande autor, que deve ficar nos
programas (era importante), mas não é o único grande autor daquela geração, há
outros. Um que eu acho enorme é o António Lobo Antunes.
OF: Para finalizar, algumas questões breves:
- Que conselho daria a quem quer enveredar pelo caminho da escrita?
MC: Três conselhos: trabalhar,
não esperar resultados imediatos no seu trabalho e assumir essa profissão como
um calvário.
OF: Há algum escritor que queira destacar?
MC: Aquilo que eu acho é que era
importante que as coisas deixassem de se passar desportivamente em Lisboa. Há duas grandes
figuras de gerações muito mais novas do que eu, essas duas figuras estão a
trabalhar no Porto, uma na área da ficção e outro na área da poesia, em que
ninguém repara. Um é um ficcionista de grande qualidade que publicou agora o
seu terceiro ou quarto livro, e o outro é um poeta chamado Daniel Maia Pinto,
que já teve alguns prémios. É evidente que eu tenho a consciência de que, se
calhar, até estou a prestar um mau serviço porque essas coisas ainda
açaimam mais os ânimos contra. Mas não posso deixar, em termos de consciência,
de dizer isso.
OF: Já referiu que está a trabalhar na biografia da presidente da
câmara de Almada, mas ainda sem data. Para quando a próxima obra? Já tem nome?
MC: Esse é um trabalho um
bocadinho lateral em relação àquilo que tinha em curso. Estou a escrever
uma espécie de autobiografia, ainda não sei se em três volumes ou num só, e
tenho também uma série de projetos. Um deles está quase a sair, é sobre
situações de amores humanos em que há uma grande diferença de idades. O primeiro
é a relação de Leonardo da Vinci com um discípulo e o segundo é a relação de
Lewis Carrol com a Alice. Sei que é calcar um terreno muito perigoso, porque
estamos numa época fria e essas coisas estão todas muito latentes e num dos casos
houve uma situação de pedofilia, mas as relações de pedofilia variam conforme
as épocas, conforme o contexto cultural. Mas apostei em escrever isso porque
acho que é importante as pessoas, de alguma forma, não reduzirem um elemento de
verdade, de autenticidade, e não fazerem da relação de um homem (ou de uma
mulher) de 90 anos com uma pessoa de 20 uma relação financeira, que é a tendência
do nosso tempo.
Em meu nome pessoal e dos leitores d’O Forjanense, muito obrigado pela
sua obra valiosíssima e pela amabilidade desta entrevista.
José Manuel Reis
O Forjanense, 26 de julho 2013