Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Ramos Rosa

Árvores



O que tentam dizer as árvores
No seu silêncio lento e nos seus vagos rumores, 
o sentido que têm no lugar onde estão,
a reverência, a ressonância, a transparência, 
e os acentos claros e sombrios de uma frase aérea.
E as sombras e as folhas são a inocência de uma ideia
que entre a água e o espaço se tornou uma leve
integridade. 
Sob o mágico sopro da luz são barcos transparentes. 
Não sei se é o ar se é o sangue que brota dos seus 
ramos.
Ouço a espuma finíssima das suas gargantas verdes.
Não estou, nunca estarei longe desta água pura
e destas lâmpadas antigas de obscuras ilhas.
Que pura serenidade da memória, que horizontes
em torno do poço silencioso! É um canto num sono
e o vento e a luz são o hálito de uma criança
que sobre um ramo de árvore abraça o mundo.

António Ramos Rosa

Exposição de Escultura de Maurício Penha


sábado, 21 de setembro de 2013

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

À conversa com Mário Cláudio



Mário Cláudio foi o convidado da quarta edição de”Na Minha Terra Cabe o Mundo Todo”, evento promovido pela ACARF e pela Associação Mar Uno, iniciava que bem por objetivo homenagear um escritor/artista da língua portuguesa e promover o contacto entre os autores e o público. Dando continuidade à tradição, O Forjanense esteve à conversa com o escritor Mário Cláudio, pseudónimo de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, nascido a 6 de novembro de 1941, no Porto, que acedeu a partilhar com os nossos leitores a sua experiência pessoal e de escritor.


O Forjanense (OF): Mário Cláudio apresenta uma tendência para “biografar”. Permita este início de conversa mais biográfico. Rui Manuel Pinto Barbot Costa fez o curso de Direito, mas advogou pouco tempo. O que o levou a escolher este curso? Por que razão mudou a sua orientação profissional?


Mário Cláudio (MC): A escolha de Direito não foi propriamente uma escolha minha, foi mais uma escolha familiar. Na altura era muito difícil aos jovens determinarem o seu futuro em termos profissionais, pois no final do liceu havia uma bifurcação de carreiras: ou ia para Ciências ou para Letras, que era aquilo a que eu estava mais propenso, que necessariamente conduziam ou a um curso de Filosofia ou Literatura da Faculdade de Letras, ou ao curso de Direito. E, nessa altura, a questão que os meus pais me colocaram foi que o curso de Letras conduzia necessariamente ao ensino, que na altura não era uma carreira muito promissora, e se tirasse o curso de Direito podia ter um futuro mais animado, mais proveitoso em termos financeiros, etc. Deixei-me influenciar por isso, fui para o curso de Direito. A meio ainda tive várias hesitações, pensei várias vezes em desistir, pensei ir para o curso de Clássicas, que era o curso que eu gostava de ter tirado porque me interessava o latim e o grego. Mas não foi possível, não porque os meus pais me impusessem isso, mas porque eu sabia que qualquer decisão minha nesse sentido ia ser um pouco penosa para o meu pai. Levei o curso de Direito até ao fim, classifiquei-me relativamente bem e continuei a cultivar as letras noutros espaços, nas horas vagas. Só depois abracei definitivamente aquilo que hoje posso chamar uma carreira, uma carreira na literatura. Entretanto, acabei por me diplomar como bibliotecário-arquivista, fiz o mestrado na Universidade de Londres, que possibilitou uma espécie de ponte entre o Direito e a Literatura. E depois foi só a Literatura, embora tivesse trabalhado até à reforma como técnico superior no Ministério da Cultura, sempre ligado à área do livro, da atividade literária.

OF: Quando surge “Ciclo de Cypris”, em 1969, aparece com o pseudónimo Mário Cláudio, que mantém em toda a sua obra. Porquê a necessidade desta identidade? Corresponde a uma orientação literária ou é um nome meramente casual?

MC: A escolha do nome é casual, não há nenhum segredo. A razão pela qual escolhi um pseudónimo foi porque, na altura em que publiquei o meu primeiro livro de poesia, eu suponha ou admitia que podia ter uma profissão na área do Direito, como advogado. Pensei nisso porque muita gente me dizia que um advogado não era propriamente muito bem quisto, bem visto, porque o mundo jurídico exigia, nessa altura, um espírito pragmático, que não joga muito bem com a experiência poética. Eu optei por utilizar um pseudónimo, só que o pseudónimo atirou-se a mim e transformou-se no meu nome.

OF: Li numa entrevista estas palavras: “Tenho memória de mim a escrever desde que sei escrever”. Até quando recua essa memória e quando é que o ato de escrita se tornou uma necessidade de vida e orientação profissional exclusiva?

MC: Recua a uma fase muito infantil. Lembro-me que o primeiro texto de ficção que escrevi foi um texto muito curto, de que não guardo memória, em torno de figuras que tinham sido inspiradas pela leitura de livro “O Feiticeiro de Oz”, na moda na classe média a que eu pertencia e que deu origem a um filme e seria como o Harry Potter de hoje. A partir daí escrevi um texto, um pequeno conto, e é aquilo que eu recordo como a mais antiga experiência de escrita, tinha 9 ou 10 anos. Mas há uma outra fase, por volta dos 13/14 anos, em que me lembro de ter escrito um poema que ainda conservo. Senti que esse poema era o início de uma atividade de escrita, que poderia ser profissionalizada ou não, que podia ser ou não transformada numa carreira, mas que eu nunca mais abandonaria. Senti isso numa tarde de fevereiro quando escrevi o poema, tenho perfeita noção disso.

OF: Essa primeira obra de 9/10 anos não foi publicada?

MC: Não foi publicada e foi perfeitamente espontânea. No entanto, durante o período da escola primária, fui sempre muito estimulado porque os professores achavam que as minhas redações eram muito boas, eram excecionais em relação àquilo que as outras pessoas faziam, tinham sempre um elemento muito inovador. Digamos que me projetava nelas, inseria nelas muito a minha natureza, pois empenhava-me naquilo que fazia quando se tratava de redação, o que não acontecia com outros exercícios, claro, designadamente com a aritmética e as outras coisas todas, que eram feitas mais por obrigação.

OF: Há quem afirme que tem “uma prática quase monástica no exercício da escrita”. Isto deve-se à imposição do trabalho de escrita ou apenas à sua forma de ser, à necessidade de introspeção?

MC: A área monástica foi sempre para mim uma atração e senti que esse caminho correspondia a uma exigência de rigor da minha parte, de austeridade e sobretudo de disciplina, disciplina no quotidiano, e é aquela que eu procuro manter na minha escrita. Tenho uma prática de escrita diária, com horas certas ou mais ou menos certas. Quando não a cumpro, sinto-me (como suponho que se sentem os monges) um pouco culpabilizado. Procuro obedecer a isso, estar presente nessa exigência que eu faço a mim próprio. Depois, na própria escrita em si, procuro conciliar sempre uma certa sensualidade mística. Abracei a escrita como um projeto de vida, em que as emoções deviam estar permanentemente enquadradas num determinado tipo de racionalidade. E pensei sempre que a minha escrita tinha de ter essa tensão entre o conteúdo e a forma, que é, no fundo, a tensão da vida, a tensão entre a sensualidade da vida, aquilo que nós vive-mos diariamente a nível dos cinco sentidos, e a consciência da existência de um outro, uma transcendência, um absoluto, que faz com que isso nos apareça como uma ilusão ou como uma limitação, e nos indica que é para outro plano que estamos vocacionados.

OF: Esse misticismo deve-se ao facto de ser um homem religioso? Como é que essa dimensão condiciona a sua visão do mundo e a sua escrita?

MC: Tem a ver uma coisa com a outra. Eu sou um homem religioso, mas gosto mais de me definir como um homem da sacralidade, que tem a consciência mais ampla da transcendência, que não reduz a religiosidade a opções de tipo clubístico ou corporativo, mas visa para além disso. Para mim, o que é importante é a presença do absoluto, de Deus, independentemente da maneira de chegar lá. No entanto, sei que a maneira de chegar lá é uma porta estreita (tenho consciência disso!) que exige disciplina, exige rigor, uma grande coragem, exige um grande despojamento, exige um grande esforço de libertação de tudo aquilo que nos condiciona. Sinto isso, independentemente de saber se o Deus se chama Alá ou se chama Jeová ou o que quer que seja.

OF: Pode ler-se na página do Projeto Vercial que “Criou um heterónimo, o poeta Tiago Veiga, hipotético bisneto de Camilo”. Embora lhe tenham feito algumas vezes esta pergunta, tendo em conta que não há registo histórico da existência desse poeta, não resisto a insistir: esta biografia corresponde à criação de um heterónimo, o alter ego de Mário Claúdio?

MC: Tenho dificuldade em responder a essa questão. A dificuldade resulta de uma razão de carácter epistemológico, que é saber o que é da área da Literatura e o que é da área da História. Muitas vezes é difícil estabelecer essa diferença. Nós falamos do romance de Camilo e falamos dos romances de Camilo. A imagem que nós temos de Camilo Castelo Branco é uma imagem construída, provavelmente não corresponderá em 80% à realidade daquilo que ele era. Depois tem os romances que ele publicou. Aqui também temos um fenómeno idêntico. Agora, se me disser que o nome dessa figura foi inventado, eu digo-lhe que sim, que foi inventado, mas a figura não foi, corresponde a uma figura do inconsciente coletivo português porque é uma figura real. A realidade dessa figura em termos de registo civil é contestável, era preciso que alguém fosse ao Rio de Janeiro, onde ele nasceu, verificar o registo, se lá está registado ou não.

OF: A sua obra tem sido escolhida como objeto de estudo para teses de mestrado e doutoramento. Vê nisso a sua consagração como escritor por parte dos académicos, corroborando a consagração dos leitores?

MC: Nessa área tem havido surpresas muito agradáveis. Nunca tive, e espero nunca vir a ter, surpresas desagradáveis. Há dois países, sobretudo, em que isso tem acontecido: um é Itália, em que tenho sido muito estudado, e outro é o Brasil. Os estudos que me têm dedicado as universidades brasileiras, de todo o território brasileiro, a Federal do Rio de Janeiro e mesmo de pequenas universidades, têm-me posto em contacto com pessoas que (e isso para um autor é muito gratificante) manifestam uma enorme paixão por aquilo que eu escrevo, seja essa paixão justificada ou não. Mas sinto que essas pessoas estão em contacto comigo, que me respeitam (é bom ser respeitado!), que me admiram e reconhecem alguma qualidade naquilo que eu faço. Em Itália também sinto o mesmo (nos outros países sinto menos, como em Espanha, França, etc.). Tanto em Itália como no Brasil há uma espécie de contínuo de teses que vão passando até de gerações de professores para outras gerações de professores como orientadores dessas teses. O que me dá ideia de que há ali uma certa vitalidade na minha obra que se mantém, não sei por quanto tempo, se calhar até por um tempo escasso, mas que está lá.

OF: Mário Cláudio é reconhecido como um grande escritor, o que é atestado pelo elevado número de prémios recebidos. Considera este reconhecimento importante? Qual o prémio que considerou mais significativo?

MC: Em relação a isso tenho a dizer que nunca me coloquei na posição de rejeitar um prémio, porque acho que só um escritor muito grande é que se pode colocar nessa posição, um pouco arrogante, de dizer “eu não aceito isto”. Eu aceitei com alguma humildade estes prémios todos, e aceitei, devo dizer, com bastante alegria, por uma razão muito simples, porque 80% desses prémios não tiveram a ver com a minha inscrição geográfica, pois sou um homem daqui do Porto, a residir no Porto, no Norte, afastado do mundo literário da capital. Portanto, se mereci esses prémios é porque eles vieram ter comigo. Nunca mexi nenhum cordelinho para ter um prémio. Nunca houve da minha parte qualquer estratégia de manipulação dos poderes dos prémios ou do júri para que me fossem atribuídos. Se os atribuíram foi porque acharam que deviam ser atribuídos. Isso foi importante.
Em relação à outra pergunta que me fez, foram de facto prémios que me marcaram muito, alguns por razões de ordem afetiva, outros de ordem, digamos, profissional. O prémio que me marcou mais, no início da carreira, foi o prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores que, nessa altura, tinha uma relevância muito maior. Hoje já ninguém fala desse prémio, mas no início da década de 80, quando o prémio foi criado, era um prémio importantíssimo, porque não havia outros. Era o Grande Prémio da Literatura Portuguesa. O primeiro galardoado foi o Cardoso Pires, no ano seguinte foi a Agustina Bessa-Luís e no terceiro ano fui eu, que era um jovem. Foi muito estimulante para mim ter acontecido nessa altura, pois foi uma espécie de empurrão, que foi muito útil e vantajoso para mim. Outro prémio que me marcou muito, por razões de ordem afetiva, foi o Prémio Vergílio Ferreira, porque conhecia muito bem o Vergílio Ferreira, fui amigo dele e respeitava-o muito. O Vergílio Ferreira foi das primeiras pessoas a reparar em mim, dizendo posteriormente, nas páginas da Conta Corrente, no Diário, que eu era um dos grandes valores da geração seguinte. Não sei se isso se confirmará ou não, mas disse isso. Portanto, sentia-me muito grato a ele por isso. Além do mais porque o Vergílio Ferreira era um homem com quem eu tinha conversas muito idênticas a estas que tenho estado a ter aqui convosco, falávamos muito de fé e questões de transcendência, etc. Ele dizia muitas vezes que tinha inveja de mim porque eu tinha esse posicionamento crente e ele não tinha. Embora tivesse feito um percurso pelo seminário, perdeu a fé e dizia isso: “eu tenho inveja, tenho inveja”. E eu sentia isso e que o facto de ele ter inveja de mim era sinal de que já havia ali qualquer coisa, de que ele queria acreditar. Querer acreditar, de alguma forma já é acreditar. É a velha frase de S. Paulo: se o procuras, já o encontraste. E isso acontecia com Vergílio Ferreira.
O outro prémio que me marcou, porque foi um prémio importante, foi o Prémio Pessoa, necessariamente, que apareceu numa fase avançada da minha vida, em que era já um escritor maduro. Tinha atrás de mim duas ou três figuras (já não me refiro às de outras áreas mas às da literatura) que tinham merecido esse prémio e lhe criaram um enorme prestígio, e vim inscrever-me, não digo com orgulho, mas com muita alegria, com muito reconhecimento também.

OF: Alguém se referiu a Mário Cláudio como um “cronista de costumes” (www.dglb.pt/sites). Como vê a sociedade atual e que papel a literatura nela deve assumir?

 MC: Essa pergunta implica que eu tenha necessariamente uma resposta moralista ou moralizante, que não é o meu caso. Não sou escritor de moralização, não sou moralista de coisas nenhumas. Limito-me a olhar para o mundo e a registá-lo na forma direta ou indireta, mais ou menos superficial nos textos que escrevo. Mas se quiser que lhe diga o que eu sinto neste momento relativamente ao mundo é um mal-estar muito grande, um grande encortinado, a sensação de que não estamos a ir para lado nenhum, a sensação de que estamos à espera de uma espécie de nó que nunca mais está a ser desatado. Não há ideologias, não há figuras de referência. Sinto isso como nunca senti ao longo da minha vida. E há outra coisa que resulta do meu quotidiano, em termos daquilo que se passa no nosso país. Cada vez que eu primo o botão do televisor para ver o noticiário e aparece o noticiário português, imediatamente passo a outro porque já sei o que vou encontrar: a imagem de misericordismo, de desistência, um certo sadismo nas notícias constantes: o que diminui, o que aumenta, as taxas baixas, os cortes, a corrupção, as pedofilias, etc. Não me revejo nesse mundo, esse mundo não tem nada a ver comigo. Por isso, rumo rapidamente ao canal Arte, que é um dos meus canais favoritos, onde às vezes acontecem coisas muito interessantes, ou o canal de História, ou o Odisseia, ou até Hollywood. Prefiro de facto fazer uma operação do tipo da avestruz, de esconder a cabeça debaixo da terra, mas eu acho que é legítimo fazer essa operação quando o que está à vista, se não fizer essa operação, é entrar completamente em parafuso e passar ao nível dos neuróticos.

OF: Numa sociedade que parece pouco preocupada com a dimensão cultural, que leitura faz da iniciativa “Na minha terra cabe o mundo todo”?

MC: Bom, isso é um caso exemplar. Também não conheço outro igual, não conheço outro exemplo de atitude, de dar mimo aos escritores como vocês têm aqui. É uma voz que está a clamar no deserto. Há uma coisa que eu tenho de dizer aqui: um escritor tem muito pouca área de intervenção no contexto em que o próprio estatuto de escritor é extremamente vago. Portanto, quando sabemos que qualquer apresentador de televisão, qualquer “bobo da corte” escreve um livro e direta ou indiretamente se intitula de escritor, perguntamo-nos “afinal quem é que é escritor?”. Se não soubermos isso, não sabemos que papel tem o escritor. Se nos interrogarmos sobre o papel que desempenham essas pessoas no mundo que temos, verificamos isto: que esses que se consideram escritores são precisamente aqueles que fazem todos os possíveis para que o mundo seja a merda que é hoje. 

OF: Passemos agora a falar especificamente da sua obra. Mário Cláudio tem uma obra multifacetada, passando pela poesia, teatro, ensaio, ficção. Mas parece haver uma certa predileção pelo romance. A que se deve?

MC: Não há uma predileção minha, o romance é que me escolheu a mim. É a área em que eu posso ter mais coisas interessantes a dizer. As outras áreas, embora paralelas e cultivadas, mantêm-se sempre marginais em relação àquilo que é a minha prática, digamos, mais sustentável, que é a escrita de ficção.

OF: Quando em 2004 recebeu o Prémio Pessoa, uma das características apontada pelo júri e unanimemente reconhecida pela crítica é a “mestria da língua” e “uma impressionante riqueza de vocabulário”. Quem foram/são os seus mestres?

MC: São os mestres de sempre. Aqueles que, infelizmente, têm vindo a ser esquecidos ou até algumas vezes mesmo insultados e que são os mestres de sempre. Sem pretender pôr-me no mesmo plano, mas no do discípulo, eu diria que esses mestres foram Frei Luís de Sousa, Luís de Camões, Padre António Vieira, Camilo Castelo Branco, Aquilino Ribeiro, Agustina Bessa-Luís. É esse o correio em que eu me inscrevo e em que eu espero continuar a ficar. Não me interessam outros.

OF: Este perfecionismo com a língua não poderá levar a um certo hermetismo, afastando alguns leitores, ou poderá antes funcionar como pedagogia, levando a leitores mais cultos e linguisticamente mais exigentes?

MC: Eu não tenho que me preocupar muito com isso, mas antes com aquilo que tenho de escrever e no momento em que tenho de escrever. Se realmente as pessoas acham que aquilo que eu escrevo é algo hermético, essas pessoas ou repõe o livro na prateleira ou vão tentar decifrar o que é esse hermetismo. O que é um dos direitos do leitor! Mas a verdade é esta: eu acho que a língua portuguesa é um extraordinário manancial que é uma pena desperdiçarmos. É como se fosse um teclado de um piano, de um órgão, em que todas as teclas devem ser tocadas. Tocar só as teclas do meio é empobrecedor. Portanto, há teclas que só de longe a longe são tocadas, mas têm de ser tocadas. Por exemplo, em termos lexicais ou vocabulares, têm de ser tocadas. Não se faz isso de uma maneira programada, mas é natural que se toquem essas teclas para que elas façam parte daquilo que é o líder quotidiano da língua portuguesa, para que ela não se atrofie numa meia dúzia de vocábulos que se repetem constantemente e que não dão origem a coisa nenhuma. Eu não tenho qualquer propósito de servir um objetivo didático. Não quero ensinar nada às pessoas, quero apenas convidar as pessoas a gostarem daquilo que eu gosto. No fundo é aquilo que nós fazemos nos nossos interstícios de amizade e amor, que é integrar aqueles que amamos e que são nossos amigos no mesmo universo de interesses e de gostos. Se não gostarem, não é por isso que deixam de ser nossos amigos, mas sentimo-nos muito mais próximos daqueles que têm afinidades connosco. É isso: como autor, tenho direito a escolher a família de leitores, como os leitores têm direito a escolher os seus autores. E é nessa base que as coisas se jogam.

OF: Ao atribuir-lhe o Prémio Pessoa, o júri salientou a “tentação biográfica”. Que personalidades são “biografáveis” para Mário Cláudio?

MC: Todas. Não há nenhuma personalidade que não seja biografável, a começar por qualquer de nós. Qualquer um de nós aqui presente tem uma vida fascinante. O que é preciso é saber por onde se entra, como se vê, de que ângulo é que se vê. Neste momento estou a escrever uma biografia, que me foi encomendada (que eu hesitei muito em aceitar e depois acabei por aceitar), de uma senhora que é presidente de uma câmara municipal deste país (e que vai agora sair definitivamente), das grandes câmaras do país da esquerda (mas não foi por isso que eu aceitei!). Aparentemente aquela mulher só tem uma biografia pública, feita de inaugurações, abertura de congressos, reuniões, obras públicas, educação, saúde, etc., tudo aquilo que faz parte da área da autarquia. Mas por trás disso há uma mulher com um coração e com uma alma. E para mim foi muito importante descobrir esse coração e alma. Provavelmente ninguém se tinha chegado dessa forma a essa mulher, que é considerada uma espécie de estátua pública. No primeiro contacto que tive com ela, em que a abordei na perspetiva da alma e coração, ela desfez-se em pranto. São essas figuras que me interessam, que têm o ser e têm o fazer. Não é só o fazer que faz as pessoas, é mais o ser, ou é a tensão entre o ser e o fazer.

OF: Em várias das suas obras empenhou-se na “homenagem e divulgação de importantes figuras da cultura portuguesa”. Mas parece impor-se uma certa predileção por figuras do norte, como “Trilogia da Mão” (1993), em que “abordou a vida e obra de figuras artísticas nortenhas”, “Duas histórias do Porto” (1986), Tiago Veiga, uma biografia (2011), “Camilo Broca” (2006). A que se deve esse facto? Não há figuras biografáveis no sul?

MC: Já referi que estou a preparar a biografia de uma autarca que é do sul, de Almada. Também fiz relativamente há pouco tempo uma minibiografia de uma fase da vida de Fernando Pessoa quando escrevia uma novela intitulada “Boa noite, Sr. Soares”, em que procurei historiar o relacionamento de Fernando Pessoa com outras pessoas. Também aconteceu isso num livro meu chamado “Gémeos”, em que aparece o Goya. Portanto, não são só figuras do Norte. Mas, em Portugal, reconheço que há uma prevalência de figuras do norte do país nas minhas obras, porque eu vivo no Norte e estou mais ligado a elas.

 OF: Ao agraciá-lo com a comenda de Cavaleiro das Artes e Letras, em 2006, O Ministério da Cultura francês, através do Consulado no Porto referiu que “Com esta condecoração, recompensa-se um dos grandes mestres da literatura portuguesa, um escritor prolixo (…), autor de uma obra rica e densa que transcende a portugalidade que tão bem revela para ganhar a arte da universalidade”. Reconhece-se aqui uma das dimensões da sua obra, a portugalidade, mas afirma-se a sua dimensão universal. O que é necessário para que se atinja este patamar literário?

MC: São necessárias duas coisas: uma é a qualidade da obra, evidentemente indiscutível (e eu não sei o que determinou isso); a outra é a mobilidade, a necessidade de as pessoas irem aos sítios. Há muitos escritores portugueses que são conhecidos internacionalmente porque têm essa mobilidade, que eu não tenho, por uma razão simples: tenho medo de andar de avião. Mas o José Saramago, que não tinha esse medo, dizia sempre uma frase que nunca esqueci, e acho que é oportuno recordar agora: “aquilo que tiver de me vir ter às mãos vem”.

OF: Já que fala em José Saramago, li numa página da internet que afirmou que o Prémio Nobel da Literatura deveria ser atribuído ao Lobo Antunes e não ao José Saramago, mas que não era por uma questão pessoal. É essa a sua opinião?

 MC: Sim. Fui amigo do Saramago, dei-me sempre muito bem com ele e cheguei a dizer-lhe que achava que o prémio devia ter sido para António Lobo Antunes. E isso não fez de nós inimigos. Assim como acho que há outras figuras da Literatura Portuguesa do passado relativamente recente que deviam ter tido esse prémio: o Torga, o Aquilino, a Sophia de Mello Breyner, ou até David Mourão-Ferreira, uma figura claramente europeia, que foi um grande escritor não só na área da poesia mas também de ficção e ensaio. Mas essas coisas são sempre um pouco aleatórias, acontecem quando têm de acontecer, (é como a eleição dos papas!).

OF: Ainda a propósito de Saramago. Apesar de ser um laureado do Prémio Nobel, muitos classificam a escrita de José Saramago como de difícil leitura, sobretudo para quem tem pouco treino nessa área e se inicia na sua leitura. Acha que ele deve continuar a ser um dos autores dos programas de português?

MC: Considero José Saramago um grande autor, um ficcionista de grande qualidade. Nunca achei a escrita dele particularmente difícil, mas compreendo que seja difícil para a maior parte das pessoas. Mas fi co muito irritado quando as pessoas me dizem: “ele não sabe escrever, não sabe usar a pontuação”. Eles não conseguem perceber que é uma estratégia, pois se alguém sabia escrever, era ele. É a mesma coisa que as pessoas que assistiram às primeiras audições das obras do Stravinsky e diziam que ele não sabia escrever música porque não escrevia como o Beethoven ou o Mozart. Em relação ao Saramago, acho que é um grande autor, que deve ficar nos programas (era importante), mas não é o único grande autor daquela geração, há outros. Um que eu acho enorme é o António Lobo Antunes.

OF: Para finalizar, algumas questões breves:

- Que conselho daria a quem quer enveredar pelo caminho da escrita?

MC: Três conselhos: trabalhar, não esperar resultados imediatos no seu trabalho e assumir essa profissão como um calvário.

OF: Há algum escritor que queira destacar?

MC: Aquilo que eu acho é que era importante que as coisas deixassem de se passar desportivamente em Lisboa. Há duas grandes figuras de gerações muito mais novas do que eu, essas duas figuras estão a trabalhar no Porto, uma na área da ficção e outro na área da poesia, em que ninguém repara. Um é um ficcionista de grande qualidade que publicou agora o seu terceiro ou quarto livro, e o outro é um poeta chamado Daniel Maia Pinto, que já teve alguns prémios. É evidente que eu tenho a consciência de que, se calhar, até estou a prestar um mau serviço porque essas coisas ainda açaimam mais os ânimos contra. Mas não posso deixar, em termos de consciência, de dizer isso.

 OF: Já referiu que está a trabalhar na biografia da presidente da câmara de Almada, mas ainda sem data. Para quando a próxima obra? Já tem nome?

MC: Esse é um trabalho um bocadinho lateral em relação àquilo que tinha em curso. Estou a escrever uma espécie de autobiografia, ainda não sei se em três volumes ou num só, e tenho também uma série de projetos. Um deles está quase a sair, é sobre situações de amores humanos em que há uma grande diferença de idades. O primeiro é a relação de Leonardo da Vinci com um discípulo e o segundo é a relação de Lewis Carrol com a Alice. Sei que é calcar um terreno muito perigoso, porque estamos numa época fria e essas coisas estão todas muito latentes e num dos casos houve uma situação de pedofilia, mas as relações de pedofilia variam conforme as épocas, conforme o contexto cultural. Mas apostei em escrever isso porque acho que é importante as pessoas, de alguma forma, não reduzirem um elemento de verdade, de autenticidade, e não fazerem da relação de um homem (ou de uma mulher) de 90 anos com uma pessoa de 20 uma relação financeira, que é a tendência do nosso tempo.

Em meu nome pessoal e dos leitores d’O Forjanense, muito obrigado pela sua obra valiosíssima e pela amabilidade desta entrevista.

José Manuel Reis
O Forjanense, 26 de julho 2013