Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Do estatuto do narrador. A propósito de "A Viagem do Elefante", de José Saramago


O habitual elefante em loja da porcelana linguística mais convencional e purista está de volta, numa provocação estética e desafio literário de não pouca relevância: é o estatuto do narrador que emerge como repto ao leitor do último “conto” – assim pretende o autor ver classificada a sua mais recente obra – do Nobel da Literatura português.
Habituados a operar com a distinção narrador-autor, com o primeiro a não ser subsumível nem tão pouco diluível no segundo, é com algum embaraço que assistimos à verdadeira osmose promovida por Saramago, entre estas duas “entidades”. Para efeitos de melhor explicitação, pensemos, ainda, na poesia e na análise centrada no “sujeito poético”: não atribuímos os pensamentos, as ideias, os sentimentos ao autor Pessoa ou Cesário Verde, por exemplo, mas referimo-nos ao “sujeito poético”, “sujeito” com o qual, de resto, os autores não têm de concordar ou se aproximar (bom, então no caso de Pessoa e seus inúmeros heterónimos, uma conciliação complexa…).
Mas o homem que gosta de quebrar as demais convenções literárias – a separação do discurso directo do discurso indirecto, com grafia adequada; os pontos de interrogação ou exclamação a concluírem frases que os reclamam; as maiúsculas nos nomes próprios, etc. – vai directo à “falsidade” das máscaras (Pessoal e Transmissível, TSF,03/11/08), um tanto mefistofélicas, que o autor coloca, escondendo-se e escudando-se, cobardemente, no seu “narrador” ou “sujeito poético”, e, pura e simplesmente, elimina o narrador, ficando o nu autor (nu). É, assim, um convite à inquietação, quanto à nossa forma de abordar/pensar o texto, que aqui se expõe.
Claro que incidindo A Viagem do Elefante sobre o já remoto séc.XVI, esta perspectiva sobre o, melhor, a ausência do estatuto do narrador, permitirá a Saramago proceder a comparações com épocas futuras (nomeadamente, aquela em que vivemos), mostrar quanto mudámos de atitude perante a vida, o mundo e os outros – “as rudes gentes destas épocas que ainda mal saíram da barbárie primeva prestam tão pouca atenção aos sentimentos delicados que raras vezes lhes dão uso. Embora já esteja a ser notada por aqui certa fermentação de emoções na trabalhosa constituição de uma identidade nacional coerente e coesa, a saudade e os seus subprodutos ainda não foram integrados em Portugal como filosofia habitual de vida”, (pág.95) – dar conta da evolução das palavras ou utilizá-las fora de época – “não sabia que entre os subordinados havia dois amantes dos pombos, dois columbófilos, palavra talvez ainda não existente na época, salvo porventura entre iniciados”, (pág.114) – baralhar e voltar a dar, exercendo, com requintado hedonismo a ironia para com os alvos mais comuns na sua obra – por exemplo, coloca na boca de um cura de uma remota aldeia portuguesa, de meados dos seiscentos, a frase dirigida à sua comunidade “lembrai-vos, o povo unido jamais será vencido”, (pág.82) – podendo, ademais, a sua abordagem narrativa, servir os intuitos mais politicamente correctos ainda que entrelaçados com humor, colocando parêntesis na história para se dirigir directamente a quem o lê – “reconheça-se (…) que um certo tom irónico e displicente (…) de cada vez que da áustria e seus naturais tivemos de falar, não só foi agressivo, como claramente injusto”, (pág.175/76).
Há, por vezes, um misto de narrador-contista-ensaísta. Saindo do cânone, a flexibilidade, a elasticidade, a inteligibilidade, a plasticidade, o humor saem, claramente, favorecidos. Mas a quantas vozes se fala, durante toda a obra? E não se objectará, também, que o autor sempre poderá buscar esconderijo no ventre das personagens que compõem a intriga, para não apor a sua assinatura a afirmações pelas quais não pretende vir a ser acusado – para seguir a lógica do raciocínio de Saramago? Não é Saramago, o Saramago narrador, por muito que não goste do substantivo adjectivo, devedor da história que começa por lhe dever mas a qual já está credora em relação a si na imaginação, na fantasia, nos factos que lhe surgem, por ela propiciados e proporcionados, já noutra “dimensão”? Não fará sentido manter a diferenciação entre aquele que está na história, a vai porfiando e revelando, e o que dela sai, mais frio e racional, exterior, e que ensaia de tudo um pouco?
Bem sei, o autor de O Memorial do Convento dirá que se fundem, e a prova provada serão os seus incontáveis aforismos, ditados populares, frases recônditas da alma abalada no fio da navalha da vida e trazidas agora ao convívio de todos, neste especialmente bem-humorado "A Viagem do Elefante".
O elefante do título é verdadeiro. Oferecido por D. João III e D. Catarina ao arquiduque Maximiliano, casado com a filha de Carlos V, e futuro Imperador. Estamos a meio do séc.XVI. O bicho irá até Valladollid, primeiro à guarda (exclusiva) de portugueses – até Figueira de Castelo Rodrigo – com a companhia vigilante de austríacos – entre esta e Valladollid; viajará, depois, para Viena, ladeado pela corte de Maximiliano. Passará tormentas, nunca irá antropomorfizar-se – embora, por uma vez, tenha ficado “triste”, (pág.120), e, por outro lado, se fale, também, na “filosofia do elefante” (pág.54), como que a dizer-nos que a procura da sabedoria não está reservada apenas para os humanos – e falará com o cornaca, seu domador, numa língua inacessível. Despedir-se-á dos humanos – “pela primeira vez na história da humanidade, um animal despediu-se de alguns seres humanos como se lhes devesse amizade e respeito”, (pág.123) - com os quais estabelece ligação, e chega mesmo a tempo de Trento para produzir um milagre (a Igreja Católica é sempre predilecto objecto de recriminação para Saramago). Como “não é todos os dias que aparece nas nossas vidas um elefante” (pág.65), a surpresa, a acomodação e o deslumbre, os aplausos e as pateadas, o carinho e a rejeição fazem parte da paleta de reacções que temos à pele – e é dessa expedição à nossa “labiríntica” alma – “ já deveríamos saber, a representação mais exacta, mais precisa, da alma humana é o labirinto. Com ela tudo é possível”, (pág.239) - que nos fala o livro. Que talvez tenha uma moral subjacente. Uma lição sapiencial, se preferirmos. “Assim é a lei da vida, triunfo e olvido” (pág.71). Quando o elefante morre, dois anos após a chegada a Viena – e passados dois anos de ter salvado uma criança da morte – os seus restos são aproveitados, e este transforma-se num…bengaleiro. Recebido em apoteose, aplaudido, com uma corte atrás, vigiado por soldados, com tratador especial, revestido de roupagens fantásticas. E, agora, bengaleiro. Vã glória, metáfora hominídea evidente. Do (da ausência de) sentido da vida (para o autor).
Das classes sociais e do cinismo, das hierarquias glosadas com engenho, do privilégio, implícito, nos seus afectos, aos mais fracos – “ que se arranjem como puderem, disse o comandante, recorrendo, à falta de melhor, a uma das frases que compõem a panaceia universal, à cabeça da qual se exibe, como exemplo acabado da mais descarada hipocrisia pessoal e social, aquela que recomendava paciência ao pobre a quem se tinha acabado de negar a esmola”, (pág.113) - da condição militar e suas fraquezas (p.ex., pág.126), dos poderes despóticos (o arquiduque que altera o nome do elefante e seu domador, de forma arbitrária), de Portugal e dos povos ibéricos e da diferença idiossincrática destes com os povos da Europa Central (esperteza e astúcia vs ordem e disciplina), dessa memória de elefante que nos leva do elefante Salomão ao sapiente rei homónimo (pag.97), da função do romancista/ficcionista (pág.226/27), da pequenez humana (págs.155 e 161), da reflexão sobre as palavras (poderá uma paisagem ser descrita por palavras? O que significa a palavra montanha para a própria montanha?, pág.241/242) e da comunidade linguística – um subjectivismo/relativismo que não foi novidade; para nós, “fora das palavras, não há nada” não é asserção válida – da natureza humana.
Mais do que ironia, o humor, uma história de milhares de quilómetros que percorremos sem cansaço nem enfado. Todo um triunfo. Para que não haja olvido.

Fora das palavras, o mundo ainda

Retomemos o ponto onde ficáramos: Subhro, mais tarde Fritz por mandamento do arquiduque Maximiliano, o cornaca, o indiano domador de elefantes, e especialíssimo companheiro de Salomão, no último conto de Saramago, tem ainda como incumbência filosofar. A reflexão sobre as palavras não é ponto menor no épico narrado. “Isto são palavras, e só palavras, fora das palavras não há nada”. Não?
Talvez o leitor, perpétuo seguidor da intriga, esteta imerso, concentrado na hercúlea viagem para Viena tropece, precisamente nas palavras, sem disso se dar conta, e ignore o enorme salto que elas – estas em concreto, do passo vindo de citar - nos propõem. E que salto teremos que dar? Ouçamos o autor (narrador): “ A verdade, se quisermos aceitá-la em toda a sua crueza, é que, simplesmente, não é possível descrever uma paisagem com palavras (…) Pergunto se vale a pena escrever a palavra montanha se não sabemos que nome se daria a montanha a si mesma”. Fora da nossa linguagem, fora das palavras não há montanhas? Nunca acederemos à realidade em si – númeno – e, sendo esse um dado (será?), não importa perscrutar essa mesma “realidade”, exercício supérfluo e condenado ao fracasso, bastando-nos a apropriação da realidade-para-nós – o fenómeno?
Bom, pelo menos é o que defende um pragmatista como Rorty, evocação imediata, reminiscência lendo Saramago. Escreveu o autor de As consequências do pragmatismo: “ Não podemos encontrar um guincho celeste que nos eleve para lá da mera coerência – mera concordância – em direcção a algo como «correspondência com a realidade tal como ela é em si». (…) Os pragmatistas gostariam de substituir o desejo de objectividade – o desejo de estar em contacto com uma realidade que seja mais do que uma comunidade com a qual nos identificamos – pelo desejo de solidariedade com essa comunidade”. Comunidade linguística, bem entendido.
A este desafio epistemológico, a esta posição pragmatista, responde com intensidade e brilhantismo Thomas Nagel, erguendo a espada da objectividade face a um redutor subjectivismo e relativismo que é, até, como o filósofo demonstrará em A última palavra, uma contradição nos próprios termos.
Observemos: “os seres humanos que têm crenças científicas ou matemáticas concordam que estas coisas são verdadeiras, sem mais, e que seriam verdadeiras quer acreditássemos nelas quer não – e, além disso, concordam que o que faz que isso seja verdade não é apenas o facto de concordarmos em dizê-lo! A única maneira de lidar com um tal slogan subjectivista é convertê-lo numa asserção específica e substantiva sobre aritmética, física ou seja o que for e ver como se sai” (pág.40). A verdade está para lá, pois, da coerência, da concordância, da solidariedade (de uma comunidade) linguística. Há mundo ainda, fora das palavras.
E o exemplo da montanha? Pois, é precisamente na montanha que Saramago se encontra com Rorty, novamente. Escreveu este último: “O que pessoas como Kuhn, Derrida e eu pensam é que é inútil perguntar se existem montanhas ou se será meramente conveniente, para nós, falar de montanhas”. Vale a pena escrever a palavra montanha (?), perguntara Saramago. Existirão montanhas, ou chamamos montanha a uma realidade apreendida por nós a que entendemos dar esse nome, ignorando – e sendo inútil investigar – se a coisa-em-si – a montanha – existe (mesmo)? Em Does Academic Freedom Have Philosophical Presuppositions? (citado por Nagel), Rorty prossegue: “isto é o tipo de coisa que queremos dizer ao afirmar que é inútil perguntar se a realidade é independente dos nossos modos de falar acerca dela. Dado que é compensador falar de montanhas, como sem dúvida é, uma das verdades óbvias acerca de montanhas é que elas já existiam antes de falarmos delas. Se não acreditarmos nisso, não saberemos provavelmente como jogar os jogos de linguagem habituais que usam a palavra montanha. Mas a utilidade desses jogos de linguagem não tem nada a ver com a questão de saber se a Realidade, tal como É Em Si, para lá do modo útil como os humanos têm de a descrever, tem montanhas”.
Thomas Nagel não desarma: “a ideia de que a objectividade não é senão solidariedade com a nossa comunidade linguística (mesmo que se alargue às coisas que a nossa comunidade linguística afirmaria serem verdadeiras, quer o tenha efectivamente dito, quer não) contradiz directamente as afirmações categóricas de que pretensamente se está a falar – afirmações como as de que há um número infinito de números primos, de que a discriminação racial é injusta, de que a água é um composto, de que Napoleão tinha menos de 1, 80m de altura”. Mas, num exercício de grande rigor (e honestidade) intelectual, Nagel traz sempre à colação o pensamento ao qual se opõe, e à exposição mais conseguida, dentro desse outro paradigma. Do ponto de vista da linguagem, é Wittgenstein quem destaca, com uma doutrina que afirma - descreve Nagel - “que, apesar da verdade do solipsismo não poder ser afirmada, se manifesta no facto de o mundo ser ainda descrito na minha linguagem, por mais que eu o descreva de modo impessoal. Não posso em verdade dizer nesta linguagem que o mundo é o meu mundo porque na minha linguagem isso é falso: o mundo existia antes de mim e teria existido ainda que eu nunca tivesse nascido, por exemplo. Mas tudo isto está a ser dito na minha linguagem, e isso mostra que, num sentido mais profundo, o mundo é o meu mundo, apesar de isso não poder ser dito”. E, no entanto…se existissem pensamentos não subjectivos, alguém teria mesmo assim de os pensar (pág.46). É a primeira resposta, breve, de Thomas Nagel, antes de desmontar o raciocínio e argumentação de Wittgenstein. É já na parte final do terceiro capítulo de A última palavra – cuja epígrafe é, precisamente, Linguagem – que o faz com inegável eloquência: “eu formularia o paradoxo dizendo que o pensamento de que as minhas palavras têm um significado qualquer é um pensamento cartesiano – um pensamento do qual não posso duvidar sem descobrir imediatamente que essa dúvida é ininteligível. Tal como não posso duvidar da minha existência, não posso ter dúvidas se todas as minhas palavras têm significado, porque, para eu duvidar disso, as palavras que uso ao fazê-lo têm de ter significado. Em essência, o argumento convida-me a concluir que talvez eu não esteja a pensar – o que constitui claramente a negação de um pensamento cartesiano. Não é impossível descobrir que algumas das palavras que estou acostumado a usar não têm significado; mas para pensar isto tenho de usar outras palavras, como palavra, que significam efectivamente qualquer coisa. No entanto, o argumento a favor do paradoxo de Wittgenstein é perfeitamente geral: se funcionar, não deixa nada de pé, incluindo ele próprio. Logo, não pode funcionar” (pág.58). Conclusão: é a lógica que exige linguagem; não o inverso; é a substância do que pensamos que reclama palavras; olhá-las, indiferentes ao seu conteúdo, à substância que nelas habita e que estas expressam é um exercício torpe. Assim, acompanhamos Thomas Nagel quando afirma que “a ordem da explicação é a inversa da presente na interpretação (errada) habitual de Wittgenstein: as práticas de seguir regras da nossa comunidade linguística só podem ser compreendidas por meio do conteúdo substantivo dos nossos pensamentos – por exemplo, dos pensamentos aritméticos. Caso contrário, serão rituais impotentes. Não conseguimos compreendê-las se as encararmos como itens de história natural” (pág.67).
Os que nos garantem, fervorosamente, que a razão é incapaz de alcançar a verdade e a objectividade fazem-no, curiosamente, por meio da razão e os que afirmam que a subjectividade é o único caminho, estão a decretar um dogma que é uma ratoeira em que facilmente se despenham. Se tudo é subjectivo, como chega a razão a tal asserção (objectiva)? Se a afirmação “tudo é subjectivo” for (apenas) uma manifestação subjectiva, que força tem ela para nos impelir a acreditar no que diz (pág.23)?
Na verdade, “não podemos criticar algo com coisa nenhuma” (pág.30). Resta-nos, deste modo, um caminho de não desistência, de resistência, trabalho, procura. A avaliação deve ser permanente e o conselho com que o filósofo nos deixa implica-nos na busca da verdade e da objectividade: “é ao avaliarmos o que é conjuntural, perspectívico, subjectivo, culturalmente relativo, que se impõem certos pensamentos como inevitáveis e correctos”; “a ideia de razão emerge da tentativa de distinguir o subjectivo do objectivo” (pág.34).
Ora, neste quadro de confiança na possibilidade da razão alcançar a objectividade e a verdade – exigindo, é certo, muito de nós – e evitando que caiamos no nada subjectivista/relativista, convém sublinhar que tal não implica uma ingénua adesão a uma pretensa omnipotência desta (da razão), sobretudo quando fechada à cultura e profundamente imanente, recusando perguntas maiores que uma certa razão considera perigosas. É precisamente por aí que Thomas Nagel não vai, e é por essa razão aberta e não dogmática que, mesmo quando discordamos, vale a pena percorrer A última palavra.


Pedro Seixas Miranda

1 comentário:

Sara Fidiró disse...

ESTUPENDO ESTE COMENTÁRIO.
OS MEUS PARABÉNS AO AUTOR PEDRO SEIXAS MIRANDA PELA MARAVILHOSA ESCRITA DESTE TEXTO.