Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

domingo, 26 de dezembro de 2010

Da possibilidade da interpretação

1-Tendemos a conceber a sociedade do conhecimento como um lugar de encontro vertical entre os especialistas e as massas. E, no entanto, perante um momento de crise global (ocidental), complexa, permeada por um vasto leque de causas e consequências, melhor seria que a um saber muito especializado, conseguíssemos opor ou contrapor um saber global, uma ideia geral do mundo. Para isso, o uso da interpretação – para cujo treino as humanidades seriam decisivas – mais do que o manejo de estatísticas, seria determinante. Emergiria, então, uma sociedade de intérpretes, na qual a horizontalidade ganharia corpo. Eis a proposta de Daniel Innerarity para o tempo presente.
2-A partir do séc.XVI, a Europa Ocidental foi palco de uma cisão entre elites e massas, às elites promovê-los e, através do professor, que Ernst Gellner dirá estar na base da ordem social moderna, passá-los às massas descritas como ignorantes, irracionais ou vulgares.
Se a intelligentsia, pelo auto-afastamento de interesses particulares e/ou corporativos, pôde reivindicar, durante muito tempo, esse lugar tutelar do mundo, ainda que, paradoxalmente, pelo afastamento dele, a verdade é que, sobretudo a separação entre o Estado e a Cultura, com o acesso cultural a ser privatizado, não reconhecerá outro valor que não o da preferência subjectiva. A mercantilização da cultura levará a que o que conte seja o cálculo de probabilidades do que é vendável, o que mina a autoridade do critério do intelectual. Enganaram-se, porém, os que acreditavam numa absoluta homogeneização, porque aquilo que se verificou foi, antes, uma (inesgotável) multiplicidade de ofertas que pretendia chegar a todos os nichos (de mercado). Mas é certo, todavia, que as peças perenes e imutáveis dificilmente se distinguem num tempo tão acelerado em que a novidade – e, simultaneamente, seu contraponto, a obsolescência – são marca incontornável.
Zygmunt Bauman, um dos mais importantes sociólogos do nosso tempo, diz-nos que é muito possível que a glória histórica dos intelectuais mantivesse uma relação íntima com outros traços, hoje desaparecidos, que caracterizaram os tempos modernos: as grandes utopias da sociedade perfeita, os projectos de reorganização global da sociedade, a busca de critérios normativos de verdade, justiça e beleza. A alta condição dos intelectuais enquanto agentes e árbitros do progresso histórico e guardiães da consciência colectiva do auto-aperfeiçoamento da sociedade não podia sobreviver à crença no progresso nem à privatização dos ideais de auto-aperfeiçoamento.
Dizemos de outro modo: se o relativismo é erigido, desde cima, da função tutelar da sociedade, do professor, do académico, como o único dogma, como o único absoluto que rejeita todos os outros absolutos, então o eu é o único critério e então cada um de nós se sentirá, as mais das vezes, no mesmo plano para afirmar em qualquer matéria. O que esta aparentemente benigna horizontalidade, contudo, parece agora dispensar é o tal encontro com os livros e outras formas de conhecimento que poderiam levar, aí sim, a uma possibilidade de interpretação com um fundamento sólido e real.
Sem esse confronto com os livros, com as humanidades, não teremos mais do que “achismo”, mesmo que um “achismo” auto-satisfeito.
Como nos diz o sábio polaco, de Poznan, “os intelectuais pouca coisa têm a oferecer à maioria satisfeita dos países ricos, a menos que se disponham a entrar na cena cultural comercializada, apresentando as suas ideias como mais uma simples mercadoria nos centros comerciais apinhados que vendem kits de identidades prontos a montar pelo cliente”.

Pedro Seixas Miranda

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