1.O modo como elogiamos uma criança, um filho, pode ser determinante
para o tipo de inteligência que desenvolve: preferível é o foco ser colocado no
processo, na tarefa ("esforçaste-te muito e deu resultado", "o
que conseguiste foi fruto das horas que dedicaste"), mais do que na inteligência
ela mesma ("és muito inteligente!"). No segundo dos casos,
estar-se-á a contribuir para o forjar de uma inteligência fixa,
com o (humano jovem) alvo de tais encómios a ficar mais dependente do elogio
alheio (do que da motivação intrínseca), a desejar, de imediato, a perfeição
(e, logo, a arriscar menos, a não querer, ou rejeitar, tarefas mais
complicadas/arrojadas), a ter mais dificuldades quando dificuldades/obstáculos
surgem; numa palavra, a ser menos resiliente. E sabe-se da centralidade da
resiliência como fator fulcral no bom reagir às mais variadas (e adversas)
circunstâncias da vida. Uma inteligência em desenvolvimento/crescimento é
que é (e deve ser).
2.Criamos (demasiadas) dicotomias, falsas dicotomias, no nosso
quotidiano (mental). Uma delas passa por criar uma cisão entre aprender e brincar.
É que a brincadeira é uma forma de aprendizagem. Uma das múltiplas
formas de aprender, aliás especialmente eficaz. Sobretudo, se livre,
sem organização (institucional, prévia). Sem que tudo esteja preparado,
decidido, cozinhado, sem que a criança intervenha. Sobretudo, se houver
tempo e espaço. Se houver crianças diversas, de idades variadas. As
crianças imaginarão brincadeiras, aprenderão a negociar entre elas (para que
não haja desistências do jogo, para que não haja desinteresse), irão testar os
seus limites (físicos, por exemplo, nas árvores), resolver problemas.
Perceberão os outros. Os pais não deverão intervir a não ser que seja
estritamente necessário. Há uma centralidade do brincar na Dinamarca, país com
5 milhões de habitantes, onde a LEGO - de leg godt, "brinca
bem" - surgiu, na oficina de um carpinteiro, em 1932.
3.Mostrar vulnerabilidade, em sendo (esta) autêntica, claro, em uma
conversa com a descendência pode ser muito útil: aproxima, gera confiança,
mostra como se ultrapassou um período, ou situação, menos feliz. Assume (-se)
que não apenas a felicidade existe, passamos por várias emoções e sentimentos.
As crianças gostam de escutar estas histórias (dos mais próximos), sentindo a
verdade das mesmas.
4.No Reino da Dinamarca, como explicam Jessica Alexander e Iben
Sandahl, em Pais à maneira dinamarquesa, as histórias, os
contos, os filmes são muitas vezes sombrios, carecem de um happy end,
que julgam desnecessário, aliás. Não só porque a vida nem sempre é
cor-de-rosa, não apenas porque é bom que sejamos capazes de identificar e lidar
com tais situações, como, por vezes, apresentam, revestem tais narrativas o
carácter terapêutico de nos recordar (implicitamente) os privilégios que a
nossa existência contém (no confronto com o trágico do filme, ou conto infantil
apresentado). Ler, ler muito para crianças, diferentes estudos o
comprovam, contribuem para gerar empatia (nestas).
5. Desde 1973, a Dinamarca, nos mais diversos estudos e inquéritos
acerca da felicidade, surge, quase incessantemente, como país líder nesse
âmbito determinante. Embora muitas aproximações às causas que conduzem o
país a esse lugar possam ser aduzidas - como um olhar político para um Estado
Social generoso, por exemplo -, a educação, e, em particular o modo como pais e
filhos se relacionam, pode ser uma determinante a destacar. E aqui um
valor fundamental: o país alça a Humildade a lugar cimeiro na sua pauta
axiológica.
6. As autoras de Pais à maneira dinamarquesa distinguem
entre pais autoritários ("é assim porque eu
mando", "fazes isso porque eu digo"), que, não raro,
geram filhos com bons níveis de desempenho escolar, mas com índices de medo,
ansiedade, stress,locus interno, autoestima não
satisfatórios, e pais autoritativos (progenitores
que fixam regras claras, também, mas que fazem da democraticidade, do
respeito pelas opiniões dos descendentes, pela sua valorização elementos
determinantes, não raro conseguindo contribuir para filhos nos quais se detetam
não apenas bom rendimento escolar, como autoestima, locus interno, resiliência
muito consideráveis).
7.A democracia aprende-se, também, na escola: alunos e professores podem
definir, e definem, em conjunto, regras/padrões (comportamentais) para um
inteiro ano escolar e levam-nas a sério - uma turma, por exemplo,
compromete-se, em caso de barulho de um seu elemento, a levantar-se, em
uníssono, para dez voltas à sala a bater palmas (eficácia e autocontrolo). E
um Professor pode combinar e/ou fixar, metas para o aluno, não apenas de índole
académica, mas de competências pessoais e sociais. É a pessoa toda - e não
apenas o estudante, ou, por exemplo, o desportista - que está em causa.
8."Numerosas empresas dos EUA estão a formar os seus quadros no
sentido do reenquadramento" (p.72): perante uma dada situação,
conseguir percecioná-la/compreendê-la de modo novo, de tal sorte que se alcance
o filtrar do que não interessa em uma dada circunstância (e, portanto, se
abdique de um pessimismo desesperado, e se (e)labore em sentido construtivo),
eis o desiderato. Note-se: "o reenquadramento altera a química do
cérebro, bem como o modo como interpretamos dor, medo, ansiedade"
(p.75). E a linguagem é, justamente, um poderosíssimo instrumento
de reenquadramento: "a linguagem é uma escolha e muda o que
sentimos" (p.76/78). Pode/deve auxiliar - o reenquadramento -
a criança a não se concentrar no que não consegue, mas, ao invés, no que
alcança (tem capacidade de alcançar). Aqui, importa ter especiais
cuidados: muito do que pensamos de nós mesmos advém do que nos disseram,
repetiram (à exaustão) em idades precoces. A imagem que construíram (e nos
passaram) de nós mesmos. Ora, este instalar de crenças nos filhos ("ele é
antissocial", "ela é terrível a Matemática", "ela não é
muito estudiosa") inculca, ou é suscetível de promover, um autoconceito (fixista)
que contém elementos potencialmente perturbadores, ou, no limite, destrutivos.
Separar a pessoa do problema revela-se aqui
decisivo.
9.Segundo a lógica dinamarquesa, alunos com diferentes performances no
domínio académico (mais brilhantes, ou não tão conseguidos a esse nível), ou em
termos de competências sociais (tímidos, ou gregários) devem juntar-se, na
medida em que, desta forma, poderão apreciar as diferentes qualidades de cada
um, e valorizá-las devidamente (empatia).
10. A expressão hygge (lê-se huga) tipicamente
dinamarquesa, significa aconchego, e remete para o ambiente de
relacionamento - há velas, bolos e chá; não há televisões ligadas, ipad,
iphones e gadjets que tais -, no qual família e amigos - o mais importante
preditor de felicidade -, estão em locus amenus, situam-se em
um estádio (ambiência) em que os problemas ficaram à porta,
o eu cedeu ao nós, a dimensão colaborativa está muito
presente, a sensação de qualidade de existência exaltada. Os dinamarqueses
partem do preconceito de que a criança é boa: escolhem um modo
de agir a partir desta premissa. Não acreditam na conceção antropológica mais
pessimista, o Homem mau e egoísta, guiado, exclusivamente, pelo interesse
próprio: "a empatia é visível em todo o tipo de animais" (p.102);
"estamos programados para a empatia" (p.102); "a empatia
não é um luxo, mas uma necessidade" (Daniel Siegel). Nas
Escolas, há programas, por exemplo dos 3-8 anos, como o Livre de
Bullyng, em que os alunos aprendem, em cartões, a interpretar expressões
faciais, emoções, sentimentos - sem os julgar. É muito raro um pai dinamarquês
criticar uma criança, junto ao filho. Um dos pilares, para os dinamarqueses, de
gerar empatia, passa por não fazer julgamentos dos outros.
11. Os professores dinamarqueses são formados segundo o princípio differentiere -
o que significa, formados para olhar cada aluno como uma pessoa com
necessidades específicas (p.128). Não se trabalha para um
aluno médio, indistinto, uniforme, abstrato (uma das críticas de Joaquim
Azevedo ao modelo educativo português). E nas escolas, como em
casa - é muito raro observar-se um pai dinamarquês aos berros com a prole -,
procura-se evitar os problemas a castigá-los. Como? Por exemplo: alunos hiperativos
podem sentar-se em almofadas terapêuticas insufláveis, o que as ajuda a
concentrar-se nas aulas(p.128).
12. A generosa missão que consiste em ser pai demanda um grau
elevadíssimo de auto consciência. Nomeadamente, quanto aos padrões
de resposta (educativa), as reações relativas a momentos indesejáveis dos
meninos, soluções, estas, tantas vezes incorporadas desde a própria infância (e
do modo como foram educados). Por vezes, tal é assumido como o que deve ser
feito, a resposta adequada, as coisas como elas são. Sem discussão. Não
há, em tais casos, a interiorização que a resposta que foi dada poderia ter
sido diferente: "se for a Itália, verá crianças a jantar às nove da noite
e a correr pelos restaurantes quase à meia-noite; na Noruega, os bebés são regularmente
deixados a dormir ao ar livre com temperaturas negativas; e os miúdos belgas
têm permissão para beber cerveja"(p.23). O ideal do espectador
imparcial (A.Smith) se pode ser posto em causa - na sua real
operatividade -, reclama, pelo menos, uma espécie de educação comparada (para
evitarmos armadilhas de uma perspetiva excessivamente particularista).
Os pais dinamarqueses perceberam que as lutas de poder, por tudo e por nada, no
interior da relação familiar, só deterioram o ambiente entre todos ("na
comida, sempre que puder dê uma alternativa ao seu filho", p.135; quer
dizer: valerá uma exaltação exasperada a recusa da couve de Bruxelas?).
13. A punição física é, ainda, permitida em 19 estados
norte-americanos. O castigo corporal é aceite em colégios privados de 50
estados dos EUA. Alguns estudos sugerem que 90% dos americanos usam o castigo
físico como forma de disciplinar os filhos. Na Dinamarca, o fim da punição
física nas escolas deu-se em 1967 (em Portugal, tal apenas sucedeu em meados
dos anos 90, do século passado).
14. Certamente, questões como a absoluta saída do nosso lebenswelt (mundo
da vida) como, em realidade, uma impossibilidade (mesmo práticas
diversas daquelas com que mais familiarizados estamos poderão ser, por nós,
aceites justamente na medida em que sejam, ainda, compatíveis com essa - nossa
- mundividência e um modo determinado de a
apreender/traduzir/interpretar); a ideia de non faccere (parental) bastante
acentuada, quanto ao modus faciendi das brincadeiras não
poderá contraditar a ideia de necessidade de limites que as
crianças solicitam (ainda que inconscientemente) aos adultos em que mais
confiam?; o enfoque na dimensão do locus interno, como significando
um controle daminha vida, a vida que decorre de fatores que
dependem penas de mim, se apela a uma responsabilização (e
rejeitam, a partida, a ideia de um determinismo de um destino, e da impotência
face a fatores de diferente natureza que impendem sobre a existência), não
conduzem, outrossim, e em pólo oposto, ao ignorar de diferentes elementos,
exógenos ao indivíduo, e que constrangem, inapelavelmente, o seu devir, e ainda
a uma ausência de necessidade do outro, de uma completude (que me falta),
de uma dádiva, uma graça, um dom que não depende de mim
(e não gerará disfuncionalidades de outra natureza; uma excessiva
(auto)culpabilização)?; mais: não será este tudo depender de mim quase
que contraditório com a noção de que a perfeição não existe (noção,
de resto, vertida na obra; se tudo depende de mim, qual o limite a que devo
ater-me?); quando se aborda a questão da empatia, não faltou assinalar quanto
esta, em excesso, pode ser potenciadora de manipulação (identifico-me de tal
modo com o sentir do outro, que uso esse conhecimento para o manipular), ou de
uma corrosão interna (sinto de tal maneira o mau estar do outro que isso
perturba, em permanência, o meu próprio estar, incapacitando-me, mesmo que
parcialmente, em desempenhos de diferente índole, como o profissional)?; embora
se perceba, dada a filiação de nacionalidade de uma das autoras, o livro,
sempre que neste se estabelecem comparações entre países (de ordem educativa,
de mentalidades, cultural) fixa-se, quase em exclusivo, na relação
Dinamarca-EUA ("o país mais individualista do mundo", segundo um
estudo mencionado na obra): não teria sido possível oferecer mais literatura
comparada neste domínio?; os bons resultados em alguns dos âmbitos
exibidos, não deslustram, evidentemente, aproximações outras aos mesmos
problemas (reflita-se, a título de ilustração, no modo como em Portugal
experiências têm sido conduzidas, separando alunos, em função da sua
performance académica, com resultados encorajadores ao nível do desempenho
global, escolar, dos alunos; mas aqui assinale-se: os objetivos podem ser
diferentes, e no olhar dinamarquês, eventualmente, uma maior preocupação com a
dimensão empática de alunos - que, com a mistura de alunos aludida, verificam,
no seu semelhante, qualidades positivas, ainda que diferentes das suas, face a
um outro foco, este no resultado escolar puro e duro, em uma outra realidade
nacional/cultural); evidentemente, procurou-se, em Pais à maneira dinamarquesa, oferecer
um lastro cultural específico e, nesse sentido, percebe-se que "os pais
dinamarqueses" tinham que ser tomados como uma espécie de massa
indiferenciada que prossegue o mesmo ideal e os mesmos caminhos (educativos)
para o atingir (ainda que alguns possam contestar a ausência de mais nuances,
ou um traço que possa parecer muito cor-de-rosa da realidade retratada).
Seja como for, há um extraordinário acervo de reflexões, intuições,
práticas, estudos, instituições que nos são proporcionadas nesta obra e que
resultam em uma sabedoria de experiências feita que merece consideração e
estudo. E os dinamarqueses são os mais felizes do mundo há 40 anos.
[Iben Sandahl é psicoterapeuta, especialista no aconselhamento de famílias
e crianças, Professora de formação, trabalha numa clínica privada perto de
Copenhaga; Jessica Alexander ensina Comunicação e Técnicas de Escrita,
formadora cultural, colunista, com bacharelato em Psicologia]