Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

sábado, 1 de outubro de 2016

"Pais à maneira dinamarquesa", de Jessica Joelle Alexander e Iben Dissing Sandahl,


Síntese, análise e comentário
por Pedro Miranda


1.O modo como elogiamos uma criança, um filho, pode ser determinante para o tipo de inteligência que desenvolve: preferível é o foco ser colocado no processo, na tarefa ("esforçaste-te muito e deu resultado", "o que conseguiste foi fruto das horas que dedicaste"), mais do que na inteligência ela mesma ("és muito inteligente!"). No segundo dos casos, estar-se-á a contribuir para o forjar de uma inteligência fixa, com o (humano jovem) alvo de tais encómios a ficar mais dependente do elogio alheio (do que da motivação intrínseca), a desejar, de imediato, a perfeição (e, logo, a arriscar menos, a não querer, ou rejeitar, tarefas mais complicadas/arrojadas), a ter mais dificuldades quando dificuldades/obstáculos surgem; numa palavra, a ser menos resiliente. E sabe-se da centralidade da resiliência como fator fulcral no bom reagir às mais variadas (e adversas) circunstâncias da vida. Uma inteligência em desenvolvimento/crescimento é que é (e deve ser).

2.Criamos (demasiadas) dicotomias, falsas dicotomias, no nosso quotidiano (mental). Uma delas passa por criar uma cisão entre aprender e brincar. É que a brincadeira é uma forma de aprendizagem. Uma das múltiplas formas de aprender, aliás especialmente eficaz. Sobretudo, se livre, sem organização (institucional, prévia). Sem que tudo esteja preparado, decidido, cozinhado, sem que a criança intervenha. Sobretudo, se houver tempo e espaço. Se houver crianças diversas, de idades variadas. As crianças imaginarão brincadeiras, aprenderão a negociar entre elas (para que não haja desistências do jogo, para que não haja desinteresse), irão testar os seus limites (físicos, por exemplo, nas árvores), resolver problemas. Perceberão os outros. Os pais não deverão intervir a não ser que seja estritamente necessário. Há uma centralidade do brincar na Dinamarca, país com 5 milhões de habitantes, onde a LEGO - de leg godt, "brinca bem" - surgiu, na oficina de um carpinteiro, em 1932.

3.Mostrar vulnerabilidade, em sendo (esta) autêntica, claro, em uma conversa com a descendência pode ser muito útil: aproxima, gera confiança, mostra como se ultrapassou um período, ou situação, menos feliz. Assume (-se) que não apenas a felicidade existe, passamos por várias emoções e sentimentos. As crianças gostam de escutar estas histórias (dos mais próximos), sentindo a verdade das mesmas. 

4.No Reino da Dinamarca, como explicam Jessica Alexander e Iben Sandahl, em Pais à maneira dinamarquesa, as histórias, os contos, os filmes são muitas vezes sombrios, carecem de um happy end, que julgam desnecessário, aliás. Não só porque a vida nem sempre é cor-de-rosa, não apenas porque é bom que sejamos capazes de identificar e lidar com tais situações, como, por vezes, apresentam, revestem tais narrativas o carácter terapêutico de nos recordar (implicitamente) os privilégios que a nossa existência contém (no confronto com o trágico do filme, ou conto infantil apresentado). Ler, ler muito para crianças, diferentes estudos o comprovam, contribuem para gerar empatia (nestas).

5. Desde 1973, a Dinamarca, nos mais diversos estudos e inquéritos acerca da felicidade, surge, quase incessantemente, como país líder nesse âmbito determinante. Embora muitas aproximações às causas que conduzem o país a esse lugar possam ser aduzidas - como um olhar político para um Estado Social generoso, por exemplo -, a educação, e, em particular o modo como pais e filhos se relacionam, pode ser uma determinante a destacar. E aqui um valor fundamental: o país alça a Humildade a lugar cimeiro na sua pauta axiológica.

6. As autoras de Pais à maneira dinamarquesa distinguem entre pais autoritários ("é assim porque eu mando", "fazes isso porque eu digo"), que, não raro, geram filhos com bons níveis de desempenho escolar, mas com índices de medo, ansiedade, stress,locus interno, autoestima não satisfatórios, e pais autoritativos (progenitores que fixam regras claras, também, mas que fazem da democraticidade, do respeito pelas opiniões dos descendentes, pela sua valorização elementos determinantes, não raro conseguindo contribuir para filhos nos quais se detetam não apenas bom rendimento escolar, como autoestima, locus interno, resiliência muito consideráveis).

7.A democracia aprende-se, também, na escola: alunos e professores podem definir, e definem,  em conjunto, regras/padrões (comportamentais) para um inteiro ano escolar e levam-nas a sério - uma turma, por exemplo, compromete-se, em caso de barulho de um seu elemento, a levantar-se, em uníssono, para dez voltas à sala a bater palmas (eficácia e autocontrolo). E um Professor pode combinar e/ou fixar, metas para o aluno, não apenas de índole académica, mas de competências pessoais e sociais. É a pessoa toda - e não apenas o estudante, ou, por exemplo, o desportista - que está em causa.

8."Numerosas empresas dos EUA estão a formar os seus quadros no sentido do reenquadramento" (p.72): perante uma dada situação, conseguir percecioná-la/compreendê-la de modo novo, de tal sorte que se alcance o filtrar do que não interessa em uma dada circunstância (e, portanto, se abdique de um pessimismo desesperado, e se (e)labore em sentido construtivo), eis o desiderato. Note-se: "o reenquadramento altera a química do cérebro, bem como o modo como interpretamos dor, medo, ansiedade" (p.75). E a linguagem é, justamente, um poderosíssimo instrumento de reenquadramento: "a linguagem é uma escolha e muda o que sentimos" (p.76/78). Pode/deve auxiliar - o reenquadramento - a criança a não se concentrar no que não consegue, mas, ao invés, no que alcança (tem capacidade de alcançar). Aqui, importa ter especiais cuidados: muito do que pensamos de nós mesmos advém do que nos disseram, repetiram (à exaustão) em idades precoces. A imagem que construíram (e nos passaram) de nós mesmos. Ora, este instalar de crenças nos filhos ("ele é antissocial", "ela é terrível a Matemática", "ela não é muito estudiosa") inculca, ou é suscetível de promover, um autoconceito (fixista) que contém elementos potencialmente perturbadores, ou, no limite, destrutivos. Separar a pessoa do problema revela-se aqui decisivo.

9.Segundo a lógica dinamarquesa, alunos com diferentes performances no domínio académico (mais brilhantes, ou não tão conseguidos a esse nível), ou em termos de competências sociais (tímidos, ou gregários) devem juntar-se, na medida em que, desta forma, poderão apreciar as diferentes qualidades de cada um, e valorizá-las devidamente (empatia).

10. A expressão hygge (lê-se huga) tipicamente dinamarquesa, significa aconchego, e remete para o ambiente de relacionamento - há velas, bolos e chá; não há televisões ligadas, ipad, iphones e gadjets que tais -, no qual família e amigos - o mais importante preditor de felicidade -, estão em locus amenus, situam-se em um estádio (ambiência) em que os problemas ficaram à porta, o eu cedeu ao nós, a dimensão colaborativa está muito presente, a sensação de qualidade de existência exaltada. Os dinamarqueses partem do preconceito de que a criança é boa: escolhem um modo de agir a partir desta premissa. Não acreditam na conceção antropológica mais pessimista, o Homem mau e egoísta, guiado, exclusivamente, pelo interesse próprio: "a empatia é visível em todo o tipo de animais" (p.102); "estamos programados para a empatia" (p.102); "a empatia não é um luxo, mas uma necessidade" (Daniel Siegel). Nas Escolas, há programas, por exemplo dos 3-8 anos, como o Livre de Bullyng, em que os alunos aprendem, em cartões, a interpretar expressões faciais, emoções, sentimentos - sem os julgar. É muito raro um pai dinamarquês criticar uma criança, junto ao filho. Um dos pilares, para os dinamarqueses, de gerar empatia, passa por não fazer julgamentos dos outros.

11. Os professores dinamarqueses são formados segundo o princípio differentiere - o que significa, formados para olhar cada aluno como uma pessoa com necessidades específicas (p.128). Não se trabalha para um aluno médio, indistinto, uniforme, abstrato (uma das críticas de Joaquim Azevedo ao modelo educativo português). E nas escolas, como em casa - é muito raro observar-se um pai dinamarquês aos berros com a prole -, procura-se evitar os problemas a castigá-los. Como? Por exemplo: alunos hiperativos podem sentar-se em almofadas terapêuticas insufláveis, o que as ajuda a concentrar-se nas aulas(p.128).

12. A generosa missão que consiste em ser pai demanda um grau elevadíssimo de auto consciênciaNomeadamente, quanto aos padrões de resposta (educativa), as reações relativas a momentos indesejáveis dos meninos, soluções, estas, tantas vezes incorporadas desde a própria infância (e do modo como foram educados). Por vezes, tal é assumido como o que deve ser feito, a resposta adequada, as coisas como elas são. Sem discussão. Não há, em tais casos, a interiorização que a resposta que foi dada poderia ter sido diferente: "se for a Itália, verá crianças a jantar às nove da noite e a correr pelos restaurantes quase à meia-noite; na Noruega, os bebés são regularmente deixados a dormir ao ar livre com temperaturas negativas; e os miúdos belgas têm permissão para beber cerveja"(p.23). O ideal do espectador imparcial (A.Smith) se pode ser posto em causa - na sua real operatividade -, reclama, pelo menos, uma espécie de educação comparada (para evitarmos armadilhas de uma perspetiva excessivamente particularista). Os pais dinamarqueses perceberam que as lutas de poder, por tudo e por nada, no interior da relação familiar, só deterioram o ambiente entre todos ("na comida, sempre que puder dê uma alternativa ao seu filho", p.135; quer dizer: valerá uma exaltação exasperada a recusa da couve de Bruxelas?).

13. A punição física é, ainda, permitida em 19 estados norte-americanos. O castigo corporal é aceite em colégios privados de 50 estados dos EUA. Alguns estudos sugerem que 90% dos americanos usam o castigo físico como forma de disciplinar os filhos. Na Dinamarca, o fim da punição física nas escolas deu-se em 1967 (em Portugal, tal apenas sucedeu em meados dos anos 90, do século passado).

14. Certamente, questões como a absoluta saída do nosso lebenswelt (mundo da vida) como, em realidade, uma impossibilidade (mesmo práticas diversas daquelas com que mais familiarizados estamos poderão ser, por nós, aceites justamente na medida em que sejam, ainda, compatíveis com essa - nossa - mundividência e um modo determinado de a apreender/traduzir/interpretar); a ideia de non faccere (parental) bastante acentuada, quanto ao modus faciendi das brincadeiras não poderá contraditar a ideia de necessidade de limites que as crianças solicitam (ainda que inconscientemente) aos adultos em que mais confiam?; o enfoque na dimensão do locus interno, como significando um controle daminha vida, a vida que decorre de fatores que dependem penas de mim, se apela a uma responsabilização (e rejeitam, a partida, a ideia de um determinismo de um destino, e da impotência face a fatores de diferente natureza que impendem sobre a existência), não conduzem, outrossim, e em pólo oposto, ao ignorar de diferentes elementos, exógenos ao indivíduo, e que constrangem, inapelavelmente, o seu devir, e ainda a uma ausência de necessidade do outro, de uma completude (que me falta), de uma dádiva, uma graça, um dom que não depende de mim (e não gerará disfuncionalidades de outra natureza; uma excessiva (auto)culpabilização)?; mais: não será este tudo depender de mim quase que contraditório com a noção de que a perfeição não existe (noção, de resto, vertida na obra; se tudo depende de mim, qual o limite a que devo ater-me?); quando se aborda a questão da empatia, não faltou assinalar quanto esta, em excesso, pode ser potenciadora de manipulação (identifico-me de tal modo com o sentir do outro, que uso esse conhecimento para o manipular), ou de uma corrosão interna (sinto de tal maneira o mau estar do outro que isso perturba, em permanência, o meu próprio estar, incapacitando-me, mesmo que parcialmente, em desempenhos de diferente índole, como o profissional)?; embora se perceba, dada a filiação de nacionalidade de uma das autoras, o livro, sempre que neste se estabelecem comparações entre países (de ordem educativa, de mentalidades, cultural) fixa-se, quase em exclusivo, na relação Dinamarca-EUA ("o país mais individualista do mundo", segundo um estudo mencionado na obra): não teria sido possível oferecer mais literatura comparada neste domínio?; os bons resultados em alguns dos âmbitos exibidos, não deslustram, evidentemente, aproximações outras aos mesmos problemas (reflita-se, a título de ilustração, no modo como em Portugal experiências têm sido conduzidas, separando alunos, em função da sua performance académica, com resultados encorajadores ao nível do desempenho global, escolar, dos alunos; mas aqui assinale-se: os objetivos podem ser diferentes, e no olhar dinamarquês, eventualmente, uma maior preocupação com a dimensão empática de alunos - que, com a mistura de alunos aludida, verificam, no seu semelhante, qualidades positivas, ainda que diferentes das suas, face a um outro foco, este no resultado escolar puro e duro, em uma outra realidade nacional/cultural); evidentemente, procurou-se, em Pais à maneira dinamarquesa, oferecer um lastro cultural específico e, nesse sentido, percebe-se que "os pais dinamarqueses" tinham que ser tomados como uma espécie de massa indiferenciada que prossegue o mesmo ideal e os mesmos caminhos (educativos) para o atingir (ainda que alguns possam contestar a ausência de mais nuances, ou um traço que possa parecer muito cor-de-rosa da realidade retratada). 
Seja como for, há um extraordinário acervo de reflexões, intuições, práticas, estudos, instituições que nos são proporcionadas nesta obra e que resultam em uma sabedoria de experiências feita que merece consideração e estudo. E os dinamarqueses são os mais felizes do mundo há 40 anos.
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[Iben Sandahl é psicoterapeuta, especialista no aconselhamento de famílias e crianças, Professora de formação, trabalha numa clínica privada perto de Copenhaga; Jessica Alexander ensina Comunicação e Técnicas de Escrita, formadora cultural, colunista, com bacharelato em Psicologia]




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