[E depois de ver...]
Estamos livres, os guardas desapareceram… Não sei
se ficaram cegos ou se morreram, sei apenas que já não estão aqui e que isso
nos dá uma liberdade que me atormenta… Não que gostasse de estar aqui, não
gostava, mas pelo menos estávamos “seguros”; cá fora não sei como está o mundo,
não sei quantas mais pessoas veem, se é que alguém além de mim vê…
Deixamos o lugar para trás e dedico-me agora a
procurar a nossa antiga casa, a cidade está de rastos, não reconheço nada
disto, não parece realidade… Há carros parados no meio da estrada e parece que
todas as ruas são iguais, bem, todas estão igualmente destruídas, preenchidas
de um caos que nunca pensei que veria…
- Temos que chegar a casa, não sei durante quanto
mais tempo vou conseguir ver e não podemos ficar na rua, é demasiado perigoso.
No caminho para casa vejo o horror das pessoas que
estão na rua, elas lutam por tudo o que têm, mesmo que não saibam bem o que é
nem com quem estão a lutar… É incrível como mesmo na miséria a ganância
prevalece, e não o vejo só nas ruas; já lá, onde todos lutávamos para
sobreviver, nos pediram os nossos pertences mais valiosos em troca de comida,
não entendi porquê, ninguém iria conseguir usá-los para que alguém os visse e
elogiasse, apenas eu posso ver e eu não faço distinções entre as pessoas pelos
seus bens…
De repente, no caminho para casa, olho para o lado
e vejo o supermercado onde costumava ir, as portas estão partidas, os vidros
que costumavam ser parede também… Peço a todos que esperem por mim enquanto
entro e procuro algo que nos possa ser útil. Está deserto, tudo o que havia
aqui foi destruído ou roubado, desço para o armazém, mas alguém o encontrou
antes de mim, está semeado de corpos e o cheiro não se aguenta. Volto para
perto dos meus e conto-lhes as tristes novidades; resta a esperança de que algo
em casa se tenha salvado. Já não estamos longe, apenas uns metros até chegar…
Chegamos a casa e por um milagre a chave continua
na caixa do correio, pego nela e, como quando entrei pela primeira vez nesta
casa, sou consumida pela ansiedade, este lar, que fez da menina mulher, agora
vê-a a chegar desfeita, que tristeza, queria que nada fosse real… Abro a porta
e tudo permanece intacto, é como se o tempo tivesse parado aqui para preservar
o que fomos obrigados a deixar para trás…
Peço a todos que entrem e que fiquem à vontade,
mesmo que eu não esteja… sinto que não pertenço aqui, que estou a invadir algo
que não é meu...
A noite chega e por mais voltas que dê na cama não
consigo dormir, não sei como tudo será daqui para a frente, não há nada a ser
produzido e o que restava já foi consumido… Digam-me que isto não é o fim, que
não acaba assim… Quando abro os olhos para limpar as lágrimas… nada, fiquei
cega…
Acordo aflita e comigo acorda o meu marido que
segura a minha mão e me diz:
- “Tem calma,
foi só um sonho, eu estou aqui, estás bem.”
Texto realizado por Sara Costa, 11º C, a partir da visualização do filme "Ensaio sobre a Cegueira", na disciplina de Filosofia.
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