Nas viagens que as férias por vezes propiciam, há quem aceite integralmente o menu disponibilizado pela agência onde tratamos de tudo, pelos guias oficiais, pelos locais obrigatórios, onde serão vistas e ouvidas as imagens e palavras obrigatórias e indispensáveis. Há quem preferira a aventura solitária, mais ou menos programada, à descoberta de locais virgens que o folheto turístico deixa de lado e com que se surpreende os que por ali passaram sem terem visto. Há quem prefira a terceira via e encontre um equilíbrio perfeito entre as duas tendências anteriormente descritas. Mas muitos menos serão, creio, aqueles que, em férias, quando se deslocam a uma cidade/vila/aldeia o fazem para…ver trabalhar. Surpreendido?
Aceitemos a sugestão de Alain de Botton (Alegrias e Tristezas do Trabalho) e pensemos nessa categoria especial que são os observadores de navios cargueiros. Pensem bem neste prazer: ir a uma cidade, em busca de um porto, para, sem qualquer finalidade ou utilidade (eminentemente prática), perceber, estudar, captar, minuciosamente, todos os passos, tudo o que diz respeito a estes navios. Como um coleccionador.
Porque há tão poucos interessados em descobrir os segredos dos navios cargueiros? Botton não é supérfluo na explicação: “tal não se deve apenas ao facto de serem difíceis de localizar e assustadoramente difíceis de identificar. Algumas Igrejas de Veneza também se encontram situadas em locais recônditos, o que não impede que sejam visitadas por um grande número de pessoas. O que torna os navios e os portos invisíveis é um preconceito descabido que leva a que se considere peculiar expressar sentimentos fortes de admiração por um petroleiro ou por uma fábrica de papel, ou, na realidade, por quase todos os aspectos do mundo do trabalho”.
Por isso, os que correm os museus de nome para dizerem que lá estiveram, que por lá passaram – como dizia Carrilho, muito na senda de Lipovetsky, quando tudo é cultura então nada é cultura, e hoje o desconhecimento da grande cultura e, simultaneamente, a sua veneração é uma marca do tempo – não se julguem em outro patamar quando comparados com os observadores de navios. Bem pelo contrário: “Como parecem frívolos os frequentadores de museus, quando comparados com eles, na procura impaciente da cafetaria, na atracção que sentem pelas lojas de recordações, na prontidão com que utilizam os assentos. Muito raramente alguém terá passado duas horas sob uma chuvada intensa diante de Hendrickje banhando-se no rio munido apenas de uma garrafa-termo com café para se aquecer”.
Estes observadores de navios cargueiros são, ainda, detentores de uma resistência psicológica anti-mundana que os faz especialmente atractivos a quem não verga perante todas as normas comunitárias/culturais/societárias: “tão-pouco receiam parecer excêntricos quando a sua curiosidade o exige. Não hesitam em se agachar para poder observar os propulsores dos navios. Adormecem a pensar em que ponto do oceano é que um determinado petroleiro se encontrará naquele momento. O poder de concentração destas pessoas lembra o de uma criança pequena que pára no meio de uma rua de comércio muito movimentada e se baixa para poder examinar, com a atenção de um erudito bíblico que folheia as páginas de um livro em pergaminho velino, um resto de pastilha elástica colado ao pavimento ou o modo de fechar da algibeira do seu casaco. Também são como as crianças pequenas a maneira como fazem tábua-rasa das ideias convencionais sobre o que poderá constituir um bom emprego, valorizando sempre o valor intrínseco de uma profissão, sobrepondo-se aos benefícios relativos em termos materiais, considerando que a função de operador de guindaste num terminal de contentores é particularmente invejável em virtude da posição vantajosa que lhe permite um bom posto de observação dos navios e docas”.
Talvez a paixão sobre a qual vimos falando pareça agora, a uns tantos, um impulso vanguardista. Do que se trata, ao invés, é de um regresso ao passado: “o passatempo dos observadores de navios remonta aos hábitos dos viajantes anteriores à época moderna, que, quando chegavam a um novo país, tinham tendência para mostrar uma curiosidade muito particular pelos seus celeiros, aquedutos, portos e oficinas, convictos de que a observação do trabalho podia ser tão estimulante como assistir a qualquer coisa num palco ou observar o mural de uma capela”.
Não é apenas nas próximas férias e revisão do seu conceito que falamos: falamos, sobretudo, do repensar o trabalho – aqui concebido em forma de beleza, seu valor intrínseco e, no homem, como continuidade da Criação.
Pedro Seixas Miranda
Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real
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