À boleia da visita de Bento XVI ao Reino Unido, evoco, hoje, a figura de João Duns Escoto, eminente filósofo/sacerdote/professor da segunda metade do séc.XIII e início do séc.XIV, provavelmente nascido na fronteira da Escócia, na vila de Duns, personagem determinante nos debates da Reforma que tiveram protagonistas como Lutero e Calvino, conhecido como “doutor subtil”, e cujo excesso desta última qualidade – a subtileza – o terá afastado do (re) conhecimento da generalidade do público.
No entanto, vale a pena pensar nisto: se Escoto foi determinante para os debates posteriores – “durante a Reforma, os debates entre Lutero e Calvino e os seus adversários católicos tiveram como pano de fundo, fundamentalmente, teses escotistas pretensamente verdadeiras”, escreve Anthony Kenny, no volume de Filosofia Medieval, da sua Nova História da Filosofia Ocidental, que a Gradiva vem editando, entre nós – como explicar que os manuais e as aulas de História – nomeadamente no Ensino Secundário - omitam o seu contributo, silenciem os seus escritos, ignorem que polémicas seguintes resultaram da ancoragem em postulados seus? Mais uma vez, a formação dos docentes, a qualidade dos manuais, a indagação última dos fundamentos dos problemas colocados aos alunos ficam em equação. E se, hoje, a filosofia é parente pobre dos currículos escolares, que pensar de qualquer melhoria futura, quanto ao conhecimento mais aturado de outros autores, de outras teses fundamentais? É também desafio a pais e alunos: um cepticismo prudente deverá levar os mais exigentes a seguir novas leituras, a consultar outras obras, a nunca se contentar na procura irrenunciável do autêntico conhecimento: a escola não basta.
De regresso a Escoto, é, ainda, indispensável dizer que “a estrutura na qual Descartes faria assentar os fundamentos da filosofia moderna era, em todos os aspectos essenciais, uma construção erguida em Oxford, por volta de 1300” (A.Kenny). Espaço e tempo onde situamos Escoto. Depois de Oxford, Duns Escoto iria para Paris, à época a principal universidade – que Oxford, então, pretendia mimetizar (dado também curioso, à luz dos rankings universitários actuais…o que mostra como a Terra se move).
Um ponto liga umbilicalmente a viagem de Bento XVI ao Reino Unido (quer nos seus discursos, quer na aceitação mediática da mesma), à evocação de Escoto, à história da filosofia, e, em particular, à filosofia medieval: a necessidade de, sem cessar, questionarmos o bem fundado dos nossos preconceitos, submetê-los à razão e verificar se se justificam. O agnóstico Anthony Kenny reconhece que “havia nos meios académicos a crença generalizada de que a filosofia medieval não merecia ser estudada. Via de regra, esta crença não se baseava em qualquer conhecimento próximo dos textos importantes: era algo mais parecido com uma herança não questionada de um preconceito religioso ou humanista”. E, no entanto, “o estudo da filosofia foi mais profissionalizado durante a Idade Média do que em qualquer outro dos tempos anteriores ao nosso”. Mais: “o quarto de século que separa a Summa Theológica de Aquino, da Lectura de Escoto foi um dos períodos mais importantes da história da filosofia”. E sobre geografia, uma outra lição: “uma história da filosofia ocidental da Idade Média tem de incluir filósofos que não são «ocidentais» em nenhum dos sentidos que o termo tem modernamente, pois as fronteiras da Europa Latina medieval eram, felizmente, porosas a influências do mundo muçulmano e das minorias que viviam no seu seio. A influência de versões latinas de textos de Avicena e Averrois na grande escolástica não foi menor que as obras dos seus predecessores cristãos”.
Registar, igualmente, o trabalho paciente e rigoroso, inevitavelmente longo, que guardar e fixar um texto e um pensamento, proceder a uma verdadeira edição crítica, reclama: “em 1938, a ordem dos Franciscanos criou, em Roma, uma comissão de especialistas com a finalidade de produzir uma edição crítica das obras de Escoto. Este importante texto seria publicado pela imprensa do Vaticano entre 1950 e 1993, com o título Lectura I-II. O volume Lectura III, publicado em 2003, corresponde, com grande probabilidade, ao curso dado por Escoto, em 1303, em Oxford, após se ter exilado em Paris”. Hoje, os estudiosos do pensamento medieval e, especificamente, de Escoto, os filósofos ou teólogos que a ele se dedicam, recorrem, sem qualquer objecção ou obstáculo, à edição do Vaticano. Quanto ao curso ministrado no início do séc.XIV, ficamos ainda a saber que “na Idade Média, um curso universitário adquiria a sua forma definitiva quando o professor comparava os seus próprios planos das lições com os apontamentos dos alunos e fundia estes materiais num texto único e aprovado, conhecido por Ordenatio”.
De entre as asserções de Duns Escoto, reflectidas por (e à luz de) Kenny, gostaria, neste curto espaço, de partilhar a sua ideia acerca da felicidade, deixando-a à consideração do ouvinte. Escoto concorda com Aristóteles e São Tomás de Aquino em que os seres humanos têm uma tendência natural para procurarem a felicidade (affectio comodi), mas, indica, além disso, uma tendência natural para a justiça (affectio iustitiae). “A propensão natural para a justiça é uma tendência para obedecer à lei moral, independentemente das consequências que isso tenha para o nosso bem-estar” (como que a ideia de imperativo categórico, avant la lettre). “A liberdade humana consiste no poder de pôr na balança as exigências incompatíveis da moralidade e da felicidade”. Para lá do questionamento da real incompatibilidade de termos proposta, para aquele que foi Presidente da Academia Britânica, “Escoto tem certamente razão quando sustenta que a própria felicidade não é o único desígnio possível na vida. Uma pessoa pode planear a vida de modo a estar ao serviço da felicidade de outrem ou da promoção de uma determinada causa cujo triunfo seja pouco provável no decurso da sua vida. Uma filha pode prescindir da perspectiva de casar, de ter uma companhia agradável e de uma carreira criativa para dar assistência a um familiar acamado. Afirmar que essas pessoas procuram a sua própria felicidade porque estão a fazer o que querem fazer não é convincente”. Note-se como aqui está em causa a própria noção de altruísmo como (im) possibilidade - a negação da mesma vê o altruísmo como forma particular de egoísmo. Talvez os que neguem o ser do altruísmo tenham lido Sartre e pensem o amor como forma de coisificação do outro, determinando, pois, que o inferno são os outros. Talvez quem tenha lido Pascal Bruckner pense que se pode estar num estádio contrário ao de Perpétua Euforia e que, em muitos casos, os amigos, a família, o outro são o apelo irrecusável, maior mesmo do que a felicidade própria. E essa liberdade de escolha (de vida) não deve ser tiranizada, desde logo pela sua ridicularização.
Pedro Seixas Miranda
Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real
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