Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Depois da imagem, as palavras.

                                                           A parteira, de Paula Rego


Olhava com o olhar assustado e marejado de lágrimas aquele anjo ou diabo que a livraria de uma semente indesejada porque depositada no seu corpo num dia de muita champanha com a qual havia festejado o seu aniversário, os seus 18 anos…
Nem queria acreditar, quando, a tremer, entrou naquele quarto com cheiro fétido a álcool, a lixívia, a desinfectante, de uma casa humilde no fim da rua do bairro onde ela própria vivia… Para ali entrou às escondidas, de noite, acompanhada pelo amigo de infância, agora pai da “coisa” que tinha dentro de si e desesperadamente devia tirar para acabar o martírio… Por ela, enfrentaria o céu e o inferno para criar o que, de há um mês àquela parte, já sentia ser seu, orgulhosamente seu, e desejava ver crescer…. Mas aquele que lhe havia servido copos de champanha toda a noite, aquele que lhe havia afagado o ventre, o sexo e as lágrimas, não queria e ameaçava renegar o fruto que no seu ventre se desenvolvesse. Que mais poderia fazer…E no entanto…
Abriu as pernas, imitando a parteira que, no seu regaço, segurava uma bacia assustadora que acolheria o que dela saísse desfeito, então, em sangue criminoso... Tremia de medo, de emoção, de medo do pecado que cometia, com medo do castigo que sabia que Deus guardaria para si, antevendo, ainda, o terror de não voltar a ter a oportunidade de sentir vida a borbulhar nas suas entranhas…
- Não tenhas medo... Isto não custa nada… É como limpar o rabo a meninos… - disse irónico e insensível o diabo - A tua mãe nunca saberá de nada - acrescentou o anjo, manipulando uns instrumentos a que, numa espécie de alucinação, assemelhava a machados e pistolas…
Não! Ela não era uma assassina e tinha corpo para trabalhar e sustentar uma criança… A sua criança…. Mãe teria e o pai… Quem sabe… Com o tempo….
Estava resolvida! Olhou corajosa e desafiadoramente aquela mulher que pretendia friamente anular a existência de um ser a troco de dinheiro, levantou-se, atirou para o chão a manta inunda que lhe cobria o sexo, ouviu o som de uma bacia a cair, abriu a porta e saiu, sem olhar para o amigo, o amante, o progenitor que, sentado na sala contígua, balbuciou perplexo:
- Já?!...

Isabel Monteiro

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