1.Principiemos
pelo título. Possibilidades múltiplas de o decifrar. No interior do próprio
texto (que titula), podemos situá-lo num poema de Daniel a Esther: “Existe no meio do tempo/a possibilidade de uma ilha” (p.352). O
que significará, face a um cepticismo radical sobre o humano (“a criança é uma espécie de anão perverso,
de uma crueldade inata, no qual se reconhecem imediatamente os piores traços da
espécie”, p.56), o mundo (“calvário
ininterrupto que é a existência dos homens”, p.57), qualquer sentido (“o ser humano não foi concebido para a
felicidade”, p.57); face a um tom ácido, sombrio, corrosivo que o texto
comporta (“é triste, o naufrágio de uma
civilização, é triste ver soçobrar as mais belas inteligências”, p.285);
face, mesmo, e desde logo, a um cinismo brutal do seu autor, Daniel – que chega
a adquirir contornos de verdadeiro nihilismo: pense-se, a quando do suicídio do
filho, como nada lhe fica na memória, no sentimento, anotando que não gostava
do descendente, que este “era tão
estúpido como a mãe e tão mau como o pai” e cujo desaparecimento “estava longe de constituir uma catástrofe”
(p.26) –, o estranho e surpreendente, a real insuspeitada presença de
esperança, reconhecimento de que o amor é possível no (seu) tempo (assim se
poderá decifrar a frase no poema, ele mesmo uma implausibilidade, “a poesia estava morta” (p.153), a
Esther, a quem se surpreende a amar). Mesmo no interior de um mundo mau, de
gente egocêntrica e cruel, há, afinal e ainda, uma ilha, o amor (“que o amor incondicional é condição de
possibilidade de felicidade, já os humanos o sabiam, pelo menos os mais avançados”,
p.66). Para um texto sem concessões, impiedoso, há um sopro de poesia que
reluz.
Por
outro lado, A possibilidade de uma ilha poderia
ser visto como um programa que visa sondar uma estação que fez da anomia
social, da recusa da relação, do isolamento, do fragmento marcas registadas.
Será que o humano consegue viver sendo uma ilha?, parece perguntar o
filósofo/sociólogo/antropólogo que o ficcionista mostra também ser. De outra
perspectiva: se, como celebremente John Donne afiançou, “nenhum homem é uma
ilha” não estaremos, num estádio em que nos recolhemos/encolhemos para ilhas,
perante a morte do humano? Não é essa a lógica subjacente à (ao desenho da)
emergência dos neo-humanos –
prolongamentos do ADN dos humanos que os precederam, mas diversos destes em
“qualidade”, “essência” -, por parte do romancista?
Serão
estas duas possibilidades interpretativas inconciliáveis? - poderemos, ainda,
perguntar. Será que ao afirmarmos que mesmo num mundo em decomposição o amor é
possível – porventura, a sua fonte de regeneração, assuma este carácter de eros, philia ou uma palavra de compaixão – não estamos a contrariar, no
seu núcleo, a ideia de morte do humano?
Se
olharmos para a/uma ilha de modo literal, então vemos que o último neo-humano, em última instância,
descobre o mar e este pode, finalmente, significar um horizonte infinito, a
possibilidade de utopia, lá onde a “narrativa de vida” (autobiografia de
Daniel) parecia inscrever, apenas, um mundo distópico (Leonidas Donskis coloca, em Cegueira
moral, não por acaso, e bem, esta obra magistral ao nível, ou na mesma
linha de Nos, de Zamyatin, Admirável Mundo
Novo, de Huxley ou 1984 de Orwell, embora observe também que
Houellebecq diz o que Spengler diz,
ainda que de outro modo).
Combinando
estas três perspectivas possíveis com vista a intentar interpretar o título
deste livro de Michel Houellebecq – e, bem entendido, a própria obra, ela mesma
– poderíamos dizer que num “mundo distópico” a verdadeira “utopia” é o amor (a
amizade, uma palavra de compaixão),
2.Para
Leonidas Donskis “o romance de
Houellebecq expõe a morte de Deus de maneira bastante inesperada: Ele morre
quando se eliminam os laços humanos e sociais”. Pois bem, a assimilação da
“morte de Deus” ao desaparecimento de “laços humanos e sociais”, parece-me, bem
mais do que inesperada, congruente: se Deus é amor e se age no mundo através da
minha responsabilidade (ética) pelo
outro, e se Deus só vai ao Homem através do Homem (e este só sai de si, para o
seu semelhante, através de Deus), então a recusa em me responsabilizar, a
recusa, mesmo, em querer saber do outro pode, pois, ser lida em chave de recusa
do amor (e Deus é amor; e o amor, como Deus, oferece-se sempre, mesmo que não
tenha interlocutor; e só no outro, de modo mediado, amamos Deus) e, visto Deus
mais como relação/acontecimento do que entidade, como recusa de Deus (para que
Deus morresse era preciso que Deus pudesse morrer). Justamente, sem relação,
sem amor, o humano coloca-se em causa (destrói-se). “De forma interessante, essa implicação filosófica [a morte de Deus
enquanto deslaçamento social] do romance (…) é um retorno a La scienza nouva de Giambattista Vico,
trabalho em que a existência de Deus é provada por meio de poderes da
comunidade humana e da sociedade civil: sociabilidade, linguagem e sentimentos.
Em suma, quando se enfraquecem ou se destroem os alicerces da sociabilidade
humana, e a esfera da linguagem e dos sentimentos, entregam-se os seres humanos
a Satanás” (Leonidas Donskis, no citado livro A cegueira moral, em co-autoria com Zygmunt Bauman).
O
sociólogo fino de A possibilidade de uma
ilha, o Daniel (auto) biógrafo nota, como um dos traços do seu tempo – este
tempo histórico há muito ultrapassado, quando o lemos pela lente de um
neo-humano, no quarto milénio, mas que na verdade coincide com este nosso tempo
actual – “a perda do sentido do sagrado”
(p.27), acompanhado da “diminuição da
alegria de viver” (p.27). Sim, “vamos
vivendo, atravessamos a vida sem alegrias nem mistérios, o tempo parece-nos
breve” (p.11). Em realidade, “as
noites já não vibram de terror nem de êxtase” (p.11). Tudo transparece na “claridade do vazio” (p.38), lá onde
houve a “condenação à morte da moral”
(p.44) e se assume que “os humanos não
têm dignidade nem direitos, que o bem e o mal são noções simples, formas pouco
teorizadas do prazer e da dor” (p.39). Em tom reflexivo, o humorista
milionário observa: “havíamos
simplificado tanto, suprimido tanto, quebrado muitas barreiras, tabus,
esperanças aberrantes, aspirações infundadas; restava tão pouco, realmente”
(p.21). Mais detidamente, “que pudesse
surgir uma nova religião no Ocidente já era em si mesma uma surpresa, a tal
ponto a história europeia dos últimos trinta anos fora marcada pelo
desmoronamento em massa, a uma velocidade surpreendente, das crenças religiosas
tradicionais. Em países como a Espanha, a Polónia e a Irlanda, uma fé católica
profunda, unânime, maciça estruturava a vida social e o conjunto dos
comportamentos dos últimos séculos, determinava a moral e as relações
familiares, condicionava o conjunto das produções culturais e artísticas, das
hierarquias sociais, das convenções, das regras de vida. No espaço de alguns
anos, em menos de uma geração, num lapso de tempo inevitavelmente curto, tudo
desaparecera, se evaporara no vazio. Hoje em dia, nestes países, já ninguém
acreditava em Deus, não se debruçava minimamente sobre o assunto, nem se
recordava de ter acreditado; e passara-se tudo sem dificuldade, sem conflitos,
sem violências nem protestos de qualquer ordem, sem sequer uma verdadeira
discussão, com a mesma facilidade com que um objecto pesado, sustentado durante
algum tempo por um entrave exterior, retoma a posição de equilíbrio logo que pode”
(p.289)
Michel
Houellebecq mostra compreender na perfeição o significado mais denso de uma
tradição religiosa: “os acontecimentos
políticos ou militares, as transformações económicas, as mutações estéticas ou
culturais podem ter um papel a desempenhar, por vezes um papel muito importante
na vida dos homens; mas nada, nunca, pode ter uma importância histórica
comparável ao desenvolvimento de uma nova religião, ou ao desmoronamento de uma
religião existente” (p.302)
3.Encontro, por
acaso, o Domingos que, em recusando usar telemóvel, email ou qualquer
dispositivo que o torne mais acessível, e em lhe perguntando se não
sente necessidade de falar com ex-colegas, amigos, conhecidos responde-me que
“a solidão é a melhor coisa que há!”. E repete - “a solidão é a melhor coisa
que há”. Talvez, de um modo tão franco e tão brutal, raramente, ou nunca, tenha
escutado, de viva voz, semelhante recusa de um contacto. Embora não fosse a
primeira vez que ouvia uma pessoa assumir como desiderato de uma jubilação –
tão antecipada quanto possível – uma fuga mundi, o deixar
isto e ir viver sozinho para a montanha, não apenas um
desabafo, mas uma convicção, um projecto, fazendo da auto-suficiência, e da
prova de conseguir viver sem os outros (vou demonstrar que não preciso dos
outros para permanecer), uma mostra de músculo e de um estoicismo que
continha, igualmente, em potência, e aqui talvez Houellebecq não tenha
considerado a perspectiva, uma (forte) crítica à sociedade em que se investe (e
não conterá, sempre, qualquer fuga mundi esse protesto, ou
pelo menos, uma desadaptação que encerra um desgosto com o estado da arte do
mundo?).
Em realidade, quando
os neo-humanos - que Houellebecq forja para o quarto milénio –
surgem assiste-se ao “desaparecimento do riso e das lágrimas” (p.53);
estes clones dos humanos – através da preservação do ADN daqueles – não
compreendem, já, a emoção religiosa, nem a caça, nem o êxtase místico dos seus
antecessores (p.38); eles são “puramente racionais” [de uma
racionalidade instrumental], sem sentimentos ou emoções, sem arrebatos,
isolados, sem formarem uma comunidade. Esta recusa do outro, o amor
como constrangimento, a relação como algo a superar, e a
formulação de um mundo povoado por átomos, conta-se entre as mais incisivas
páginas/reflexões (desta obra) sobre os limites do paroxismo que já a sociedade
que Daniel, o humorista que escreve uma auto-biografia lida pelo seu
sucessor neo-humano (um novo humano, um humano de
tipo diferente, uma coisa outra que não o humano como o conhecemos), habitara
trazia incubado. Daniel – em certo sentido, como que assumindo-se como o louco nietzscheano
capaz de dizer a verdade por revelar e, ao mesmo tempo, como o profeta [Daniel]
que golpeia a sua sociedade: “sou cínico, amargo, só posso ter interesse
para pessoas algo predispostas à dúvida, pessoas que começam a viver num
ambiente de fim de festa” (pp.32-33) reconhece que a certa altura da sua
vida “já não tinha amigos” (p.56), até porque “a partir de certa
idade, entre dois homens inteligentes, já tudo foi dito”
(p.76). E, embora vivendo com Isabelle, “não tínhamos ninguém com quem
partilhar a casa, nem um copo de vinho” (p.56).
Depois de, para
surpresa do próprio, ter sido surpreendido pelo amor, quando, anos mais tarde,
descobre Esther, como que sucumbe a um abismo de gerações – Esther, muito mais
nova, terá múltiplos relacionamentos, e desprezará a concepção e sua
materialização de ficar para sempre com Daniel - que é, em
realidade, bem mais do que isso, um salto, um mergulho qualitativo para
um humano a caminho de neo: em percebendo que o seu quadro mental
de apego a uma pessoa (a uma mulher), em que a sexualidade não estava desligada
e jamais dispensava o afecto (“sempre necessitara de afecto para me sentir
sexualmente feliz”, p.182; o sexo pelo sexo não chegava), se tornara
uma tonteria para a gente mais nova – um retrato corrosivo e
certeiro de uma determinada cultura que perpassou/perpassa, de facto, uma parte
da juventude nas últimas décadas; mas não a vejo como a cultura;
sem contemplações, Daniel constata, a partir do masculino, a ironia das coisas:
“o projeto milenar masculino de despir o amor de qualquer conotação
afectiva, tinha agora a sua concretização” (p.277) -, assume a sua ingenuidade –
paradoxo maior, de quem se afirma como uma espécie de super-homem sem
nenhuma ilusão, acerca do universo, dos humanos e de si próprio, mas como que a
dizer que isto é ainda mais negro, mais sombrio do que o narrador
julgava e, portanto, convocando, claramente, uma dimensão moralista ao seu
olhar – e discorre: as novas gerações recusavam o amor, a paixão, o
sentimento de exclusividade, de dependência (p.277); “deambulei
entre eles como uma espécie de monstro pré-histórico com as
minhas imbecilidades românticas, os meus apegos, as minhas ligações”
(p.277); “quanto ao amor, não havia nada a esperar: eu era sem dúvida um
dos últimos homens da minha geração a amar-me suficientemente pouco para ser
capaz de amar outra pessoa, embora raramente” (p.344) Ora,
“para esta geração a sexualidade não passava de um divertimento agradável”
[sem vínculos outros a ela associados]. Que “não implicava nenhum
compromisso sentimental especial” (p.277). Com uma crueza, uma
ironia corrosivas e uma sofisticação cortantes, Houellebecq, ou Daniel,
oferecem-nos a nova mundividência em que o sonho – na verdade, a distopia – é
igualar a ausência de vínculos, de relações, de apego, de ligação a liberdade,
a ser (-se) livre [ausência de vínculos é = a liberdade]. A captação do momentum sociológico
adquire uma pertinência que cremos incontornável: “o amor nunca
fora com certeza mais, como a compaixão para Nietzsche, do que uma ficção
inventada pelos fracos para culpabilizar os fortes, para introduzir limitações
à sua liberdade e à sua ferocidade naturais” (p.277); os humanos “haviam
conseguido, após décadas de condicionamento e esforço, haviam finalmente
conseguido extirpar dos seus corações um dos mais velhos sentimentos humanos”
(p.277): “em nenhum momento da vida conheceriam o amor. Eram livres”
(p.277). Era, assim, muito pouco provável que a nova espécie fosse uma “espécie
sociável” (p.343): “a sociabilidade passara de moda, desempenhara o
seu papel histórico”, mas “reduzira-se hoje a um vestígio inútil
e incomodativo” (p.343). Em suma, “hoje em dia, que tudo se extinguiu,
todas as tribos se dispersaram, encontramo-nos isolados mas semelhantes, e
perdemos a vontade de nos unirmos” (p.118).
4.Se não estamos
prometidos ao amor, se a relação não é, já, o alfa e o ómega da existência, se
não queremos, de modo algum, estar juntos, se não queremos saber do outro, que
coisa é essa a vida? Que sabor tem (se é que algum possui), que sentido lhe
descortinamos? E, numa palavra, o que é (nestas circunstâncias) ser humano?
Somos apenas
biologia, na desencantada cosmovisão de Daniel: “um belo arranjo de
partículas, uma superfície lisa, sem individualidade” (p.275); um
animal amoral à procura do seu pedaço de prazer (p.276); “considero-os
[aos humanos] mais inteligentes do que os macacos e, por isso mesmo, mais
perigosos” (p.24); o homo homini lupus: “de dois animais
egoístas e racionais, o mais egoísta e o mais racional dos dois acabara por
sobreviver, como acontecia sempre entre os humanos” (p.392) “acontece-me
abrir as grades para socorrer um coelho, ou um cão vadio; nunca para socorrer
um homem” (p.24); “por eles, não experimento nenhum dó, nem nenhum
sentimento de pertença comum” (p.24); “odiava a humanidade” (p.341);
“assisto sem um lamento ao desaparecimento da espécie” (p.24). A
questão da individualidade coloca-se, aliás, ainda com maior acuidade,
relativamente aos neo-humanos (clones), já que, porventura,
pode sopesar-se – indagação cada vez mais colocada em tempos de Inteligência
Artificial e fusão desta com o humano - que sejam “ficções resultantes de
softwares” (p.280), “seres incompletos, seres de transição cujo
destino residia em preparar o advento de um futuro numérico”
(p.185). Sem emoções, sem riso e sem choro, sem amor e sem apego, o novo-humano, levado às últimas
consequências, aperfeiçoado – diríamos no grotesco que o livro
consegue mostrar – seria (será?) um número. Repare-se que não só há
sentimentos que se tornam incompreensíveis para anova humanidade (e
as primeiras gerações de neo-humanos surgem no século XXIV) –
“estes dois sentimentos, a crueldade e a compaixão, não têm obviamente
muito sentido nas condições de absoluta solidão em que se desenvolvem as nossas
vidas” (p.54) -, como, suplementarmente, “nada sobrara das
produções literárias e artísticas da humanidade, porque os temas que lhe
estavam na origem tinham perdido pertinência e o seu poder de emoção
evaporara-se” (p.370) e “nada sobrara dos sistemas filosóficos e
teológicos pelos quais os homens haviam batido, morrido e matado mais vezes
ainda” (p.370). A única coisa de útil – e revelador de grande engenho,
a inteligência como única qualidade e reduzida esta ao cálculo, da humanidade –
que ficara haviam sido os elementos de tipo tecnológico (p.370) (o que
manifestamente combina com um humano autómato, maquinal, frio, além de fazer coro
com o deslumbramento e endeusamento do tecnológico, dos nossos dias). Desde os
humanos – ainda antes dos neo-humanos – inaugurara-se “uma
tradição de desenvoltura em relação aos dados científicos que viria a conduzir
ao aniquilamento da filosofia” (p.338). Neste quadro, neste
entendimento acerca do Homem, neste apreender do estádio civilizacional em que
nos encontramos, neste posicionamento face à vida e o mundo, “que fazer,
então? (…) Viver? É exactamente neste género de situações que, esmagados pelo sentimento
da sua própria insignificância, as pessoas se decidem a ter filhos” (p.56);
“o único projecto da humanidade consiste em se reproduzir, em prolongar a
espécie” (p.220). Mesmo sendo como é óbvio insignificante, a
humanidade persegue-o [ao objectivo de prolongar a espécie] com
um encarniçamento aterrador. Mesmo sendo infelizes, atrozmente infelizes, os
homens opõem-se com todas as suas forças, a tudo o que possa alterar o seu
destino; querem ter filhos, e filhos semelhantes a eles, a fim de escavarem a
sua própria sepultura e de perpetuarem as condições da desgraça” [neste caso, a
afirmação do profeta da religião dos Eloimitas, aquela que irá prosperar, na
narrativa de Daniel, e já veremos porquê] (p.220); “o ciúme e a
vontade de procriar têm a mesma origem que é a dor de ser. É a dor de ser que
nos leva a procurar o outro, como um paliativo [o outro serve para
"eu" consumir]; temos de ultrapassar esta fase a fim
de atingir o estado em que o simples facto de ser constitui em si mesmo um
permanente motivo de alegria; em que a intermediação passa a ser apenas um
jogo, livremente aceite, não constitutivo do ser. Numa palavra, devemos
alcançar a liberdade da indiferença, condição de possibilidade da
serenidade perfeita” [repare-se como de uma mundividência assente na
perspectiva de uma existência em favor de uma promoção dos mais frágeis para a
qual/os quais há que trabalhar, interceder, transformar, se passa para uma
outra em que a indiferença passa a ser condição da serenidade perfeita, não
admirando, neste contexto, o que o autor escrevera sobre a queda de uma dada
religião e suas consequências – referindo-se, naturalmente, ao cristianismo na
Europa – e na emergência de filosofias orientais no Ocidente]. Houellebecq cita
Henri de Régnier: “viver avilta” (p.49).
O prazer
sexual “era superior a todos os outros prazeres, em requinte e
violência; era o único prazer, o único objectivo da existência humana”
(p.320); uma existência contínua devotada aos prazeres “era este o
sentido do movimento da história, era esta a sua direcção a longo prazo, que
não se limitaria ao Ocidente” (p.343) Mas nem o prazer sexual escapará
ao impulso narcísico; este, o fechamento absoluto da possibilidade da relação,
conduzirá, afinal, para utilizarmos os termos de Chu-Han, à agonia de Eros:
“há um breve período ideal, durante a dissolução das sociedades de forte
moral religiosa, em que os jovens sentem verdadeiramente vontade de uma vida
livre, desregrada, alegre; depois cansam-se, a competição narcísica vai-se
sobrepondo aos poucos e, por fim, têm ainda menos relações sexuais do que no
tempo de forte moral religiosa” [de aí que me pareça que o tempo de Bacantes,
a que se referia Steiner, se tenha esgotado um tanto e aquele confronto
geracional, acima descrito, ou salto qualitativo no que é o humano, se tenha
que mitigar e, por isso, a meu ver, não é a cultura].
Em todo o caso, a
perspectiva de que o sexo, (e) a perpetuação da espécie são os únicos
desideratos da existência aponta bem ao deserto real, á ausência de bússola
porque o humano passa (a ocidente, mas, na visão de Houellebecq, nesta obra,
uma tendência universalista), ou, no caso da visão das coisas por parte de
Daniel, à ausência de qualquer arremedo de um (excesso do) dom presente na vida
(ou o dom que a vida constitui, ela mesma). Atente-se na descrição do último
estádio em que os humanos se encontraram antes de darem lugar ao neo-humanos,
em rigor, como se percebe, em quase tudo abrindo caminho para estes – que mais
não são do que o estertor, a consequência última, a ratio destes
últimos dias levada ao limite, a concretização da distopia que vivemos: “consta
que os humanos, pelo menos os humanos do último período, aderiam com grande
facilidade a todos os novos projectos, um pouco independentemente da direção do
movimento proposto” (p.338); “a mudança em si mesma era aos seus olhos
um valor” (p.338). Para quem desconhece o Norte, qualquer caminho é bom, ou
retomando o célebre adágio de Chesterton (formulado aqui livremente): quem
não acredita em nada, está disposto a acreditar em qualquer coisa.
E, face à ausência de
rumo, para que queremos prolongar a existência? Já paramos para pensar sobre
para que serve a imortalidade, o sonho repetido semanalmente nos jornais? O que
vamos fazer numa vida (terrena) na qual não encontramos sentido, nem valor?
Manter indefinidamente os prazeres, reproduzirmo-nos até a pedra de Sísifo nos
tornar louco esse trabalho que nos impusemos, ou do mito retiramos que
justamente, in casu, humano é a cada prazer um outro se suceder,
sem nunca nos aborrecermos com prazer algum que antecede o próximo, numa lógica
de perpetuação que, em todo o caso, diferentes ensaístas e romancistas, entre
os quais Saramago, acreditavam, ainda que com humor, que não iam acabar bem?
5.No
tempo de vida de Daniel, o nosso, como vimos de dizer, havia-se criado o M.E.A
(Movimento de Exterminação de Anões) que defendia o desaparecimento da raça
humana, funesta ao equilíbrio da biosfera (p.57). Construíam-se residências
proibidas a menores de 13 anos, dado que o humano já não suportava crianças, as
preocupações que geram, os cuidados que demandam (p.58). Os principais
critérios/pilares em que assentava a sociedade eram “juventude, beleza e
força”, ou seja, segundo o narrador, “os
critérios do amor físico são exatamente os mesmos do nazismo” (p.63). A
beleza desempenhava no início do séc.XXI o mesmo papel que a nobreza no Antigo
Regime (p.180), com a respectiva “manutenção
minuciosa do corpo” a que os humanos devotavam uma parte cada vez maior do
seu tempo livre (p.267). Para além das já citadas, a ambição, a riqueza e o sexo faziam parte do menu das virtudes
requeridas no dealbar do séc.XXI (p.21). Ou, ainda, os valores da competição, da inovação e da energia. Crueldade, egoísmo
cínico, violência. Dizia-se não à
fidelidade e ao dever (p.44). E, na quebra de todos os tabus, caminhava-se
para o parricídio ou o canibalismo. Procedia-se, de resto, então, a um trabalho
de uniformização das vidas, a
alimentação vegetariana generalizava-se, bem como as futilidades New Age; os animais domésticos substituíam as crianças (p.63). O progresso
científico e tecnológico permitia um inédito controlo social (p.27) e os homens estavam, agora, reduzidos ao
estatuto de objecto sexual (p.30) (aliás, sempre provocatório Houellebecq,
“em geral, os homens são considerados
pénis ambulantes”, p.195). Não faltava a publicidade em doses maciças, a
manipulação: “aumentar o desejo até ao
insustentável tornando a sua satisfação cada vez mais inacessível”, eis a
sociedade ocidental (p.72). Repare-se que “levar
um indivíduo inexoravelmente a desejar e ansiar é ao mesmo tempo privá-lo do
seu poder de autocontrolo e apropriar-se da dignidade de outra pessoa: vemos um
ser que já não se assemelha a ele mesmo, deformado e inflamado pelo desejo”
(L.Donskis). O consumismo era a regra (p.27). O mundo das revistas cor-de-rosa conhecia um sucesso estrondoso junto do
público, moldando hábitos e normas, contribuindo para a vitória do homem light: “o que procuramos criar [diz Isabelle que trabalhava numa destas revistas do coração] é uma humanidade
fictícia, frívola, que nunca mais será acessível à seriedade nem ao humor, que
viverá até à morte numa procura cada vez mais desesperada do fun e do sexo; uma geração de kids definitivos. Conseguiremos lá
chegar sem dúvida” (p.32). Onde não há sentido, até da busca, da pergunta
se afasta o cidadão que assim fica entre o permanente engraçadismo para não se entediar – mas não sabendo que há alguma
discussão séria, porque nada é sério, nada é para levar a sério - e o sexo (a única
finalidade da existência, de acordo com o profeta). “Nem um pêlo de cultura, nem um grama de actualidade, nenhum humor”
(p.34). Neste contexto, não admira que as mães copiem as filhas (p.36), nem que
Daniel, “um neurótico ocidental” (p.174) faça questão de registar na sua
auto-biografia “a primeira conversa que
eu tivera a sério nos últimos anos” (p.179), bem como a “primeira vez desde há vinte anos que
comecei a chorar” (p.276) [aqui fica, de novo, o prelúdio para o
desaparecimento das lágrimas e do riso nos neo-humanos].
O sistema estava programado para
acabar com o dissenso, o pensamento crítico, a alternativa; tudo desaguava num
consenso mole e manso, sem nenhum rebate de consciência, sem a emergência da
figura do intelectual, ou quejandos: “o sistema
espectacular, destinado a produzir um consenso abominável, abatera-se há muito
sob o peso da sua própria insignificância” (p.225). Mais fundo ainda,
estamos perante a “impossibilidade geral
das coisas” (p.287): “Houellebecq
evidencia mais um fenómeno actual: o novo determinismo, essa incapacidade de
acreditar que até pessoas racionais, críticas e de mente liberal possam mudar o
curso da civilização” (Leonidas Donskis). Em realidade, anulava-se a opção política, pela “evidente neutralidade do real” [aqui
ressoa a crítica nuclear a toda a tecnocracia]. O comportamento humano “devia tornar-se tão previsível como um
frigorífico” (p.366). Como que assinalando uma etapa em que o chamado populismo estaria para conhecer um
momento de êxito larvar, um amigo de Daniel adverte com contundência: “o que é preciso (…) é que tenhas a ralé do
teu lado (…) com a ralé do teu lado, serás inatacável (…) o que a ralé respeita
é essencialmente o dinheiro (…) Tu tens dinheiro, mas não mostras. Tens de
reluzir um pouco mais” (p.41). Se bem que os ricos gostem de estar com os
ricos (p.114), o mesmo não sucedendo com os velhos (sem vontade de se
encontrarem os da sua geração, p.170). Como anteriormente repetidamente se
sublinhou, hoje “já não temos um
objectivo determinado” (p.11). Assiste-se à “dificuldade do sentimento amoroso” (p.27).
Companhia
inseparável de Daniel é o cão Fox – e também ele irá perdurar, mesmo após a sua
morte (devido ao material genético recolhido). Lê-se a Visão (que traduz a Time no
seu principal dossier) desta semana e, nas aspirações/sonhos e delírios
societários que expõe(m) nenhuma novidade aduz, já cá está tudo (no livro de
Houellebecq, de 2006). Mas perceba-se: “o
cão era uma máquina de amar por efeito do treino” (p.158). Daniel, “um observador acerbo da realidade
contemporânea” (p.21), perdera a virgindade aos 17 anos (p.20), numa
sociedade saturada de sexo por todos os lados (“a sexualidade talvez fosse sobrestimada”, p.152; os neo-humanos que não entendem o amor, no
seu isolamento não integram ainda “a
inacreditável importância que os humanos atribuíam ao contacto sexual”,
p.266; note-se que nas memórias de Daniel, são incontáveis as descrições de
actos sexuais, como se o estético – a forma – se ligasse à ética – o conteúdo).
Face
a este zeitgeist, após a queda do
cristianismo, e com as melhorias de vida no mundo árabe a promoverem mudanças
políticas (p.292) e, concomitantemente, nos hábitos de todos os muçulmanos, em
todo o mundo, num sentido dos prazeres serem satisfeitos, também o Islão cairá
(ele que vivera agarrado ao machismo e não sobreviverá ao feminismo e à
revolução sexual). Primeiro, com os integristas a darem lugar aos moderados. A
seguir, com o seu puro e simples desaparecimento (“os integristas islâmicos deram lugar aos muçulmanos educados e cultos e
depois ao desaparecimento destes”, p.40). Significava isto o fim da religião,
no mundo? Por um lado, o homo symbolicus
e o homo religious parecem não ceder,
o homem novo, apesar de tudo, ainda
não desabrochara por completo e mantinha intactas algumas características
milenares, pese a ingenuidade dos iluminismos e vanguardas mais radicais: “contra todas as campanhas racionalistas e
advertências”, a religião permanecera (p.188). Só que, bem entendido, uma
religião adaptada aos tempos (que na imortalidade de um corpo tal quale pode considerar-se que se nega
a si mesma). Os Eloimistas vinham anunciar que os humanos haviam sido criados
pelos Elohim [já agora, veja-se nos nossos dias o tradutor da Bíblia que
publicou livro a dizer que a Bíblia não fala de Deus, e que tal deriva da má
tradução de Elohim, plural], seres que criaram os humanos e regressarão (“Os Elohim que nos tinham criado eram
cientistas de nível muito elevado”, p.208) e a nova religião – e “nunca na história uma religião ganhara
algum ascendente dirigindo-se apenas ao intelecto (em vez da emoção e
sentimento)”, p.204) – seria, como não?, “hedonista e libertina” (p.229). O Eloimismo não impunha nenhum constrangimento moral, “reduzindo a
existência humana às categorias do interesse e do prazer” (p.293), fazendo
a apologia dos valores sociais dominantes, com práticas como orgias, uma
manipulação e ausência de escrúpulo completos. Anunciando a imortalidade (e na
luta contra a morte parecia aproximar-se das religiões monoteístas mas) pelo
prolongamento do material genético. Erradicando
toda a dimensão espiritual, a vitória era a promessa ilimitada da vida
material, isto é, a satisfação ilimitada dos desejos físicos. Em chegando à
– ou perto da – terceira idade, os crentes (Eloimistas), e as adesões são em
massa, suicidam-se (em público); querem passar para um corpo novo (jovem). E a
morte desaparecerá sem que se saiba o que fazer (com a vida eterna terrestre)
senão prolongar indefinidamente os prazeres do estádio (androide) anterior – para isso serve
a vida. É o modo muito conseguido como Houellebecq retrata uma cultura,
como aquela em que nos situamos, que “está
pronta para conviver com tudo, menos com o envelhecimento. Mais cedo ou mais
tarde essa cultura vai tentar quebrar os últimos tabus, os que se relacionam
com a pedofilia, o canibalismo e o incesto. Não são eles que nos fazem tremer
de medo – a morte e a extinção é que causam o verdadeiro terror nos nossos
corações, sobretudo numa época em que a ciência, a tecnologia e genética nos
aproximam cada vez mais da fabricação da vida e da imortalidade. Terrível não é
a expectativa de que todos iremos morrer, mas a possibilidade de perdermos por
uma ou duas décadas o momento em que os geneticistas criarão uma raça de
abastados super-homens que deixarão todas as suas riquezas a um grupo
tecnológico ou de engenharia social, caracterizado como seita escatológica e esperando
o fim do mundo (como os elohimitas da imaginação de Houellebecq) (…) Quando a
vida em si se torna o único problema, a extensão da própria vida (…), assim
como os sonhos de imortalidade alcançada não pela realização de uma promessa
transcendental, mas pela ciência, pela genética, pelas tecnologias e pela
racionalidade instrumental, tornam-se a única realidade significativa. Não a
liberdade nem a autorrealização, mas a ampliação da vida terrena e uma
imortalidade mecânica – se isso for possível (…) Uma fantasia como a da
imortalidade é um testemunho não apenas da morte da religião, de uma fé
exaurida e dissipada, mas também de uma sociabilidade evanescente” (L.Donksis).
Daniel
recorda os acontecimentos, no início do século XXI, em França, com os mais
velhos a morrerem por falta de cuidados, nomeadamente com o calor (Daniel
refere-se ao ano de 2003, p.78). E como tal, de imediato, “entrara nos
hábitos”, ano após ano, corolário da indiferença generalizada bem como do
economicismo científico que se abatera:
a falta de cuidados era, Houellebecq é corrosivo, “um meio afinal natural de resolver uma situação estatística de velhice
avançada forçosamente prejudicial ao equilíbrio económico” (p.286). Sempre
sem concessões ou contemplações, o narrador leva a sua lógica até ao limite,
num exercício de um humor cáustico e ácido, hiperbólico e contundente: os velhos deviam revoltar-se “contra os
jovens, obrigando-os à prostituição para reembolsarem os sacrifícios” por si
feitos, por aqueles (p.179). Tínhamos chegado ao desejo de retorno ao
estádio primitivo em que os jovens se livravam dos velhos sem moderação. Era um
refluxo brutal, típico da modernidade, para um estádio anterior a todas as
civilizações (p.177). Era, assim, um sinal imenso da queda da civilização, pois
“toda a civilização podia ser avaliada
em função do destino a dar aos mais fracos” (p.177). [a propósito do
pessimismo cultural, Donskis traça analogias também entre Houellebecq e Thomas
Mann].
Esta
sociedade defendia a “ideia de que todas
as espécies, independentemente do seu grau de desenvolvimento, tinham igual
«direito» de ocupação do planeta (…) [e] alguns adeptos (…) tomam
sistematicamente o partido dos animais contra o homem, experimentam um maior
desgosto perante a notícia do desaparecimento de uma espécie de invertebrados
do que perante a fome devastadora da população de um continente” (p.368).
Nesta ideologia, vai o “desejo da
humanidade se revoltar contra si mesma” (p.369).
6.
Daniel faz-se à vida como “one man show” (p.20), nada mais apropriado aos
tempos (híper-individualistas), sendo o “bobo” – e o narrador reflete acerca do humorista como o colaboracionista que
evita(va) ao mundo revoluções dolorosas e inúteis, pois que responde ele, com
as suas piadas, sketches e outros motivos, com violência à violência (do mundo)
- que converte todo o tipo de estereótipos sobre comunidades (particulares) em
motivo de escárnio, fazendo do obsceno um veículo de atracção de massas. No
mesmo espectáculo, congrega piadas anti-islâmicas e anti-semitas (p.41). Ele
que passa pelo cinema (p.41), tem um último espectáculo precisamente intitulado
“100% de ódio” (p.50). Chega a ter 6 milhões de euros (p.27). E não lhe escapa
o que isso significou quanto ao modo como encarou o trabalho: “fora de certo modo uma espécie de puta,
adaptara-me ao gosto do público” (p.174). A escrita, contudo, nesta
narrativa de vida que enceta – e quanto à narrativa da vida, não há regras
(p.26) –, e em particular a quando da perda no/do amor, dava-lhe “a ilusão do auto-controlo” e isso “permitia-me não desabar” (p.340). Até
porque “é graças à memória que o sono
não destrói de modo nenhum a sensação de identidade” (p.25).
As
memórias de Daniel não são, em qualquer caso, um mero adentrar sociológico num
dado espaço-tempo; elas são, em grande medida, uma reflexão existencial de quem
parte da premissa de que “a vida não
tinha [tem] nada de divertido” (p.174). “Na primeira parte da vida, só sabemos da felicidade quando a perdemos;
depois, sabemos que quando começamos a viver uma felicidade a acabaremos por
perder. Na terceira fase, a antecipação da perda de felicidade inibe a própria
vida” (p.143). A juventude “era o
tempo da felicidade, a sua única estação” (p.321). A maior parte das
pessoas nasce, envelhece e morre sem conhecer o amor (p.144). A humanidade, já
se sabe, está longe de ser grande coisa, na mundividência de Daniel1: “é uma tendência da sociedade (…) uma tendência geral para a barbárie, não há
nenhuma razão para esta seita [elohimita, no interior da qual se registam
homicídios e lutas fratricidas pelo poder] escapar”
(p.299). Fox, o cão, era “o único ser
digno de ter sobrevivido” (p.393), segundo o clone neo-humano do narrador que, acerca da vida, ela mesma, não era
propriamente mais optimista que o seu antecessor: “o simples facto de existir era só por si uma desgraça” (p.390); “apreendia o meu corpo como um veículo de
nada. Não fora capaz de ascender ao Espírito; continuava, no entanto, à espera
de um sinal” (p.386). Este ser “nunca
tivera decisões nem iniciativas a tomar, esse processo era-me totalmente
estranho” (p.365), numa vida, aliás, organizada/regida pela Irmã Suprema, uma guia à laia de big brother (totalitário). E que lá pelo
séc.XXIV vivia completamente isolado, rodeado de umas criaturas, os
“selvagens”, que na economia do livro de Houellebecq como que são o mais
aproximado dos (antigos) humanos: a “brutalidade
das suas relações, com a ausência de compaixão pelos idosos e pelos mais
fracos, pelo apetite indefinidamente renovado de violência, de humilhações
hierárquicas ou sexuais, de crueldade pura e simples” (p.386). Havia, aqui,
uma perenidade que se entendia observar: “as
cenas a que eu assistira perto de Alarcón, ela vira-as repetir-se, quase as
mesmas, em Nova Iorque – embora as tribos se encontrassem a distâncias
consideráveis e não tivessem há sete ou oito séculos nenhum contacto”
(p.386).
Interessado
no religioso porque, como pontuou com grande sagacidade, ele tem a
capacidade/natureza de permear/influenciar/determinar todos os sectores da vida
social, Daniel que encontrara um católico com dificuldades de relacionamento
sexual em virtude da sua filiação religiosa, no entanto “quando discutia com um cristão ou muçulmano no liceu tinha sempre a
impressão de que a sua crença era de ‘segundo grau’: era evidente que eles não
acreditavam, diretamente e no verdadeiro sentido, na realidade dos dogmas
apresentados, mas de que se tratava de um sinal de reconhecimento, de uma
espécie de palavra-passe que lhes facultava o acesso à comunidade dos crentes”
(p.212). O seu clone, quando passa por “condições
extremas” lamenta “a ausência de
Deus, ou de uma entidade da mesma ordem” (p.384) a quem se dirigir [assunto
de há muito arrumado no séc.XXIV; ao mesmo tempo, a resposta necessária face ao
mal, no sentido de Pascal: é absurdo que Deus não exista – na medida de uma
reparação final (necessária/urgente); embora também “é absurdo que Deus exista”
em face do mal, para o francês; de qualquer modo, fica uma dada concepção e
imagem que muitos possuem de Deus (como bombeiro)].
Num
sublinhado curto, mas incisivo Daniel alude àqueles que “pelo simples facto de serem pais seriam [viriam a ser] julgados
culpados” (pelos filhos) (p.327). Como que de tal sorte sublinhando ser
essa a condição da parentalidade; dada a sua intrínseca imperfeição, a
sobrevinda da crítica, o elenco de faltas ou falhas [pelo dedo acusador da
descendência…que dali a nada se transformará em acusada, assim mude de papel].
Mal nasce, o pai ou a mãe, é culpado, pois que não foi – nunca será – perfeito.
A sua “culpa” inapelável e nunca superada.
Em
uma visão sombria da vida, dos humanos e do estádio civilizacional em que se
encontra (em que nos encontramos), Daniel não pode contemplar ou conferir, como
não contempla nem confere, qualquer carácter salvífico às suas memórias: as
pessoas, mesmo que soubessem que o humorista/escritor estava a redigir acerca
de um grande acontecimento “não se
importariam, porque estavam habituadas a uma vida insípida e a um comentário”
(p.302). O comentário insere-se na
lógica do achismo quotidiano, que
sobre cada assunto tem uma opinião, para no fundo não levar nada a sério, no
meio da cacofonia (de que participa); o comentário
da sociedade dos comentadores que
merecia ser substituída pela sociedade
dos artistas, bem mais inspiradora, seguramente (Tolentino de Mendonça).
Numa
conferência, na Culturgest, há cerca
de um ano, Maria Filomena Molder recordava
que, em “As razões de ser, Fernando Gil
dizia que viver não é um
facto, é um bem. Viver não é um facto empírico – eis o que a frase quer
dizer. Mesmo os elementos da respiração (“ganhar o fôlego”, “perder o fôlego”),
os elementos fisiológicos não são apenas elementos fisiológicos, são elementos
da nossa vida. Ao serem elementos da nossa vida entram numa relação entre a
confiança e adesão ao facto de termos nascidos. Mas mesmo antes de termos
nascido nós não somos um facto: “nós fomos esperados na Terra” (Walter
Benjamim). A próxima criança a nascer não é um facto; é um bem. Isto tem a
ver com a experiência de aceitar viver. E o aceitar viver remete para o antes
de qualquer experiência: a do recém-nascido. Ele come. Ele olha, toca.
Pré-experiência: a criança agarra-se à vida (“nós agarramo-nos à vida”; e Sá de
Miranda agarra-se à vida: “aquela esperança…”; ele já bebeu a dor inteira desta
ruína). Confiança originária. Será terrível colocar em
causa essa confiança, esse princípio da existência. Mas depois é necessário um esforço de despertar para a vida. Esse
esforço é um exercício espiritual: não no sentido religioso, mas numa
disposição para a vida. Lembra-te
de viver, de Goethe, é
o mote (um leit-motiv na
obra de Goethe)”.
Se tivéssemos que nos
recolher a autores para quem a vida é um bem, na qual importaria depositar
confiança, há um dom que importa agraciar e talentos a colocar a render, então,
evidentemente, como pontos de partida, a ideia da vida como “desgraça”, a
existência como incessante “dor de ser”, a imagem que retiramos desse mundo na
mediação humana – sempre com lobos
ferozes por rostos e companheiros, em vez de seres que fazem do amor, do
apego, o essencial e entendem a alma, a dimensão espiritual como algo que lhes
permite tocar os valores eternos – bem, verdade, beleza - não seria,
evidentemente, à cosmovisão expressa pelo narrador Daniel que recorreríamos.
Todavia, se a partir de um
ponto de vista em que queremos perseverar nessa confiança na vida e no mundo,
se a mundividência postulada passa pela necessidade da relação, de um forte
vínculo e preocupação com o outro, então a crueza, a brutalidade, a violência
extrema de um universo povoado de átomos que são indiferentes ao que quer que
seja – sem riso e sem lágrimas -, incapazes de se perguntar por qualquer
sentido – nenhuma conversa séria – e deixando de fruir das grandes indagações
filosóficas e teológicas que marcaram a sua caminhada (algo agora simplesmente
inacessível, com o aniquilamento da religião, sob o signo do cristianismo, e da
Filosofia, pelo culto do cientismo, do tecnológico), nesse mundo onde todo o
dissenso foi castigado, nesse cosmos de humanos que não passam de exclusiva
biologia, então, dizíamos, a denúncia sem equívocos de Michel Houellebecq
adquire uma grandeza incontestável em virtude do seu talento literário (e de um
background onde avultarão, nesse
sombrio sobre a existência, Nietzsche ou Schopenhauer).
A propósito deste romance, e
da distopia que ele encerra – o fim do amor, das relações como a libertação/emancipação
da humanidade; o isolamento como a nova condição, num humano maquinal e
petrificado, no qual apenas a razão instrumental permanece - Leonidas Donskis
faz suas as palavras de Slawomir Mrozek: “o
amanhã é o dia de hoje exceto por chegar um dia depois”. “A
possibilidade de uma ilha, de Houellebecq, é uma teoria sociológica da
morte da sociedade, uma teoria apresentada sob a forma de literatura e que
desenvolve uma narrativa convincente. A morte da sociabilidade na fase tardia
da modernidade não é uma fantasia. As pessoas já não querem estar juntas. Já
não têm razão alguma para ficar umas com as outras”. Assim, “tudo o que resta da sociedade são
indivíduos atomizados, solitários, fragmentados, com um frágil poder de
associação. O seu único problema é consigo mesmo e com a sua morte e extinção.
Uma cultura viva cria as suas próprias formas de vida. Uma cultura moribunda já
não cria mais nada, apenas se interpreta” (Donskis). Num universo muito
marcado pelo determinismo, o fatalismo assacado ao fim das próprias relações
humanas, de cada relação que entabulamos, parece querer surgir como resposta -
na narrativa de Houellebecq. Contudo, testando-o até ao extremo, circunscreve
um limite que irrompe enquanto esperança, e esta com(o) uma força da natureza
que não adquiriria num texto delicodoce: “a
história das relações humanas é sempre cíclica: elas começam, desenvolvem-se e
depois definham silenciosamente. Só uma pessoa amada ou amiga pode romper o
ciclo e superá-lo. Vencer o ciclo das relações humanas e a sua morte constitui
a própria essência do amor e da amizade” (L.Donskis). Como Daniel sabia, “acabamos sempre por morrer de amor ou falta
de amor” (p.146). Um amor inscrito em/mediado por Esther: “não sobreviveria à sua partida [para
Nova Iorque, para uma Academia de Piano, e para representar uma peça de
Sócrates]” (p.273). A perda do amor seria uma verdadeira “catástrofe” e aí estava a angústia pronta a devorar (p.274). É na
debilidade da ferida, na inocência talentosa – e talento é algo que falta aos
sem carácter, desenvolve – que Daniel se oferece na beleza da lágrima, na
redenção do sentimento, na verdade do viver [num inusitado golpe romântico, de
alguém que, porém, assume as suas “oscilações
ciclotímicas entre o desânimo e a esperança”, p.349]: “ao mesmo tempo, tornara-me um perfeito cachorro, que um simples torrão
de açúcar teria bastado para apaziguar (…) mas ninguém me ofereceria esse torrão de açúcar” (p.341). Numa
palavra, “um pouco sentimental, um pouco
cínico” (p.327).
Podemos, pois, dizer que
nesta obra “ainda assim, Houellebecq
deixa-nos uma palavra de esperança (…) As suas palavras sobre o amor como
mistura de desejo e compaixão transformam-se na esperança do homem líquido
moderno (…) O breve e infeliz amor de Daniel por Esther (…) isso é esperança.
Se a extinção dos poderes de comunidade, sociedade e sociabilidade representa o
começo do fim do mundo, e se os indivíduos que se usam uns aos outros, mas não
se querem ver nem ouvir, aceleram a autodestruição mútua, então esse ciclo só
pode ser superado por uma vitória, mesmo que apenas momentânea, sobre o
determinismo: por exemplo, uma inesperada palavra de compaixão”
(L.Donskis).
O desiderato de despertar para a vida pode ribombar com
um tremendo som estridente de um chicote usado sem clemência – “A
possibilidade de uma ilha, de Houellebecq é a primeira grande distopia do
século XXI, até agora sem rival, destinada e feita sob medida para a era da
modernidade líquida, desregulamentada, obcecada pelo consumo e individualizada”
(Donskis) - pela pena de um autor que, em qualquer caso, mesmo no mais
tenebroso dos cenários encontrou espaço para a alteridade.
Pedro Miranda
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