Pena a peça “Martin e Hannah” ter passado à margem de Vila Real.
Ela evoca uma das mais célebres, interessantes, inquietantes e complexas relações (pessoais) no séc.XX: Martin Heidegger, o brilhante intelectual, um dos filósofos maiores dos últimos cem anos, o homem formado no classicismo greco-romano que tanto admirava, e crente nas figuras míticas germânicas, aderente às teses do nacional-socialismo; e Hannah Arendt, a aluna distinta, a pensadora de eleição, mais do que tudo, para o caso, a judia alemã que idolatrava o “pedagogo único” e que se vê perante um mar de contradições e angústias interiores que desafiam, como poucas, a condição humana.
A peça deixa, desde logo, a seguinte advertência, caso pensemos, exclusivamente, na biografia de Heidegger: a cultura não nos salva da barbárie.
Um homem com uma formação académica brilhante, uma cultura vasta, um profundo conhecedor dos maiores espíritos da Humanidade, um grande filósofo, não deixou de embarcar no projecto totalitário que conduziu à Shoa.
Isto reconduz-nos a uma questão que Peter Sloterdijk, em um livro polémico, “Regras para o parque humano”, coloca sobre a mesa: a crença que o projecto do humanismo – amansar a alma através dos livros, ou, se preferirmos, colocarmos as grandes obras a formar o carácter – transportava falhou. Hoje, diz-nos este autor, para lá desse momento histórico, a meio do séc.XX, que o pôs em causa, os “meios de desinibição de massas” – a saber, os telelixos, a pornografia, etc. – faz com que as cartas – leia-se, os livros – enviadas por amigos não encontrem – ou quase não encontrem – interlocutores. A solução (provocatória): o uso de antropotécnicas – leia-se, p.ex., mutações genéticas. Aí, porém, de imediato a questão do livre-arbítrio, da liberdade, ou da formação do super-homem não pode deixar de ser equacionada. E a alternativa a esse diálogo com os melhores espíritos seria, como Dante sabia, viver come brutti. Mas a advertência fica. Advertência completada, de resto, pela constatação de que o facto de Heidegger ser uma mente brilhante não o impedia de aspirar – e de nisso empenhar muito o espírito e o tempo – a salários melhores, progredir na carreira, conhecer e mover-se (também) muito naquilo a que se convencionou chamar “questões de mercearia”.
A peça retrata, principalmente, recentremos, essa perplexidade de um envolvimento amoroso entre Arendt – alemã judia – e o membro do partido nazi – Heidegger. A correspondência entre ambos não está, ainda, disponível ao grande público. Poucos a conheceram. Mas a Professora do MIT, Elzbietta Ettinger teve a ela acesso. Da leitura da obra que reflecte essa mesma troca de cartas – livro publicado em 2009, em Portugal - podemos perceber que a definição do problema é tudo menos fácil. Porque para além do rigor dos termos – a relação é amorosa, mas é, igualmente, e antes de mais nada, de Professor-Aluna; de tutoria; de admiração e veneração intelectual; de amizade; mais tarde, de interesse mútuo, paixão e admiração – nem sempre se compreende sem sobressalto o modo como Arendt desculpa o passado nada escrupuloso de Heidegger – na perseguição que ajuda a promover a alunos judeus, p.ex. -, as suas manipulações, as suas (de)negações tão pouco convincentes. O hercúleo esforço de Hannah na reabilitação da imagem de Heidegger, no pós-II Guerra Mundial, pode ainda, por outro prisma, ser tomado como afirmação de respeito próprio, de quem tenta, a seus próprios olhos, justificar um acreditar num personagem tão humanamente desagradável. E, aí, vai toda a possibilidade – no caso, impossibilidade – do altruísmo.
As hesitações, as mudanças bruscas de opinião sobre as pessoas, a relação com a mulher de Heidegger e com o seu próprio marido – uma teia de relações que cenariza, de facto, quão complexo é o mundo do humano. E para os mais optimistas, a conhecida noção de que “o amor supera o nojo”.
Uma peça que retrata uma relação que motiva mais dúvidas do que certezas, e que, por via dessas mesmas dúvidas, é tão pedagógica. Logo que esteja em reposição, convidem os alunos do Secundário a ir vê-la e a continuarem a reflexão na sala de aula. Um momento da História e de nós-outros que Primo Levi tão bem definiu como “Zona Cinzenta”.
Pedro Seixas Miranda
Ela evoca uma das mais célebres, interessantes, inquietantes e complexas relações (pessoais) no séc.XX: Martin Heidegger, o brilhante intelectual, um dos filósofos maiores dos últimos cem anos, o homem formado no classicismo greco-romano que tanto admirava, e crente nas figuras míticas germânicas, aderente às teses do nacional-socialismo; e Hannah Arendt, a aluna distinta, a pensadora de eleição, mais do que tudo, para o caso, a judia alemã que idolatrava o “pedagogo único” e que se vê perante um mar de contradições e angústias interiores que desafiam, como poucas, a condição humana.
A peça deixa, desde logo, a seguinte advertência, caso pensemos, exclusivamente, na biografia de Heidegger: a cultura não nos salva da barbárie.
Um homem com uma formação académica brilhante, uma cultura vasta, um profundo conhecedor dos maiores espíritos da Humanidade, um grande filósofo, não deixou de embarcar no projecto totalitário que conduziu à Shoa.
Isto reconduz-nos a uma questão que Peter Sloterdijk, em um livro polémico, “Regras para o parque humano”, coloca sobre a mesa: a crença que o projecto do humanismo – amansar a alma através dos livros, ou, se preferirmos, colocarmos as grandes obras a formar o carácter – transportava falhou. Hoje, diz-nos este autor, para lá desse momento histórico, a meio do séc.XX, que o pôs em causa, os “meios de desinibição de massas” – a saber, os telelixos, a pornografia, etc. – faz com que as cartas – leia-se, os livros – enviadas por amigos não encontrem – ou quase não encontrem – interlocutores. A solução (provocatória): o uso de antropotécnicas – leia-se, p.ex., mutações genéticas. Aí, porém, de imediato a questão do livre-arbítrio, da liberdade, ou da formação do super-homem não pode deixar de ser equacionada. E a alternativa a esse diálogo com os melhores espíritos seria, como Dante sabia, viver come brutti. Mas a advertência fica. Advertência completada, de resto, pela constatação de que o facto de Heidegger ser uma mente brilhante não o impedia de aspirar – e de nisso empenhar muito o espírito e o tempo – a salários melhores, progredir na carreira, conhecer e mover-se (também) muito naquilo a que se convencionou chamar “questões de mercearia”.
A peça retrata, principalmente, recentremos, essa perplexidade de um envolvimento amoroso entre Arendt – alemã judia – e o membro do partido nazi – Heidegger. A correspondência entre ambos não está, ainda, disponível ao grande público. Poucos a conheceram. Mas a Professora do MIT, Elzbietta Ettinger teve a ela acesso. Da leitura da obra que reflecte essa mesma troca de cartas – livro publicado em 2009, em Portugal - podemos perceber que a definição do problema é tudo menos fácil. Porque para além do rigor dos termos – a relação é amorosa, mas é, igualmente, e antes de mais nada, de Professor-Aluna; de tutoria; de admiração e veneração intelectual; de amizade; mais tarde, de interesse mútuo, paixão e admiração – nem sempre se compreende sem sobressalto o modo como Arendt desculpa o passado nada escrupuloso de Heidegger – na perseguição que ajuda a promover a alunos judeus, p.ex. -, as suas manipulações, as suas (de)negações tão pouco convincentes. O hercúleo esforço de Hannah na reabilitação da imagem de Heidegger, no pós-II Guerra Mundial, pode ainda, por outro prisma, ser tomado como afirmação de respeito próprio, de quem tenta, a seus próprios olhos, justificar um acreditar num personagem tão humanamente desagradável. E, aí, vai toda a possibilidade – no caso, impossibilidade – do altruísmo.
As hesitações, as mudanças bruscas de opinião sobre as pessoas, a relação com a mulher de Heidegger e com o seu próprio marido – uma teia de relações que cenariza, de facto, quão complexo é o mundo do humano. E para os mais optimistas, a conhecida noção de que “o amor supera o nojo”.
Uma peça que retrata uma relação que motiva mais dúvidas do que certezas, e que, por via dessas mesmas dúvidas, é tão pedagógica. Logo que esteja em reposição, convidem os alunos do Secundário a ir vê-la e a continuarem a reflexão na sala de aula. Um momento da História e de nós-outros que Primo Levi tão bem definiu como “Zona Cinzenta”.
Pedro Seixas Miranda
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