Uma semana sob o signo da liberdade. Começou, no pequeno auditório do Teatro de Vila Real, na noite da última segunda-feira (31/01/11), na evocação da revolução polaca, de 1980-81, com o segundo de dois filmes de Andrezj Wajda, O Homem de Ferro – que se seguiu a O Homem de Mármore – e que marca, com distinção, a dimensão cinematográfica do ciclo Outono Polaco, organizado pelo Grupo de Estudos Alemães, da UTAD (sob a direcção do professor Michael Laub). Os dois filmes, absolutamente notáveis, relatam as circunstâncias históricas em que ocorreu tal revolução, mas, para lá, ou mais do que isso, iluminam, uma vez mais, esse grito irreprimível pela liberdade que ressoa em cada homem. Das Antígonas que sempre permanecem – os líderes dos movimentos de ruptura que não calam já a insatisfação pelo calcar, incessante, de direitos fundamentais e que nesse erguer de voz (se) arriscam (tudo) – a essas figuras desafiantes dos nossos juízos e que se fixam numa híbrida zona cinzenta (de que, com tanta propriedade, falou Primo Levi) e que, no caso específico, é representado por um repórter da tv, controlada pelo partido, que cobre os acontecimentos – a greve nos estaleiros - percebe a iniquidade (do tratamento dado às greves e aos grevistas), mas que hesita em dar o passo para o lado oposto, balança, simpatiza com os sindicatos, mas não se determina totalmente em se afastar do regime, dessas personagens, paradoxalmente arquetípicas e concretas, nos dão estes dois filmes de Wajda um vívido e pungente testemunho. Escreve Tony Judt, em Pós-Guerra, História da Europa desde 1945 (pág.666): “Em retrospectiva, depois de 1989, a ascensão do Solidariedade surge como o tiro de partida na luta final contra o comunismo. Mas a revolução polaca de 1980-81 percebe-se melhor como o último de um crescendo de protestos dos trabalhadores que começaram em 1970 e eram dirigidos contra a incompetente e repressiva administração da Economia pelo Partido. Incompetência cínica, carreirismo e vidas desperdiçadas; aumento de preços, greves de protesto e repressão; a emergência espontânea de sindicatos locais e a participação activa dos intelectuais dissidentes; a simpatia e o apoio da Igreja Católica: esses eram aspectos familiares no renascimento de uma sociedade civil, comoventemente retratados por Andrezj Wajda em Homem de Mármore e Homem de Ferro, o seu relato cinematográfico didáctico das ilusões traídas e renascidas esperanças da Polónia comunista”. Por sua vez, Eric Hobsbawn, em A era dos extremos (pág.494) assinala: “E mesmo onde, como na Polónia, a rejeição do regime existente se tornou total, todos, com excepção dos mais jovens, conheciam o suficiente da história do seu país após 1945 para captar os tons cinza além do preto-e-branco da propaganda. É isso que dá uma dimensão trágica aos filmes de Wajda”. Judt e Hobsbawn são dois dos grandes historiadores do séc. XX. As suas obras, multipremiadas, tornaram-se clássicos. Raros são os cineastas que merecem figurar em duas antologias sobre o século passado. Pois foi à obra de um desses cineastas que tivemos a rara oportunidade de aceder, em Vila Real, na última quinzena. Um singular momento cinemateca, entre nós.
Da Polónia para o Egipto. Por dois motivos essenciais: porque muitos viram no efeito dominó que parece gerar-se no mundo árabe, em favor de mudanças de regime, uma clara semelhança com o desmantelamento do mundo comunista (embora como tenha assinalado Freitas do Amaral, na Visão (03/02/11), já, antes, o Sul da Europa - Portugal, Espanha e Grécia - havia mudado de regime político, em cadeia); em segundo lugar, e especificamente, porque a resolução política que, pretensamente, agradaria à Irmandade Muçulmana, no Egipto, poderia passar, precisamente, por um pacto em mesa-redonda, envolvendo o regime e a oposição, emulando o que se passou na Polónia no inicio da década de 1980.
O caso egípcio, da natureza do regime e da sua confrontação com a natureza e a condição humanas, é, ainda, particularmente interessante de analisar sob o prisma lançado por Ross Douthat esta semana, no New York Times: não fora o regime tão opressivo, não fossem as cadeias egípcias o que eram e talvez o World Trade Center ainda estivesse de pé. Expliquemos, citando esse livro fundamental - para quem não queira os simplismos redutores acerca do fundamentalismo islâmico - que é A Torre do Desassossego, de Lawrence Wright, Prémio Pulitzer 2007: “há uma linha de raciocínio que defende que a tragédia que se viveu nos EUA, a 11 de Setembro, teve origem nestas prisões [egípcias]. Defensores dos direitos humanos no Egipto advogam que a tortura gerou uma fome de vingança (…) O principal alvo do ódio dos prisioneiros era o governo laico do Egipto; no entanto, havia igualmente uma forte corrente de ódio em relação ao Ocidente, que aqueles homens entendiam ser uma força motriz por detrás do regime repressivo. De facto, o tema da humilhação, que é o objectivo da tortura é importante para se compreender a raiva dos radicais islâmicos. As prisões do Egipto passaram a ser a linha de produção donde saíram militantes, cuja necessidade de retaliação – justiça, como lhe chamavam – os devorava inteiramente”( pág.63). Elemento-chave da Al Qaeda, Al Zawahiri foi um dos homens que passou pelas prisões egípcias e o seu principal biógrafo regista mesmo que foi esta passagem pelo cárcere que o fez passar de um moderado da jihad para um extremista violento e implacável.
Sabemos que as alegrias com a luta pela liberdade e, eventualmente, democracia no mundo árabe – sim, a liberdade é aspiração universal humana e não exclui nacionalidades, povos, civilizações - têm que ser calibradas com a percepção da precaridade das vitórias alcançadas e pelo condicional do futuro por nascer (logo, em aberto). Prudência, mas alegria. Até porque no Libération (02/02/11), Bernard Guetta aponta quatro novos elementos de desenvolvimento nos processos de mudança política em curso nos Estados islâmicos. Primeiro: despertar do Islão associado à ampliação daquilo a que chama os valores universais da democracia; segundo, o peso adquirido por uma juventude numerosa, descontente e impaciente, que recebe da Internet o impacto cultural da globalização; terceiro, a grande importância da actual Turquia, permitindo mostrar que islamismo, laicidade e desenvolvimento económico não são inconciliáveis/incompatíveis; quarto, sugere a implantação inevitável de um novo «xadrez democrático» que vai de uma esquerda activa e moderna a partidos religiosos conservadores mas capazes de superarem os sinais bestiais do islamismo (na síntese de Rui Bebiano, no blog A Terceira Noite). Tempos interessantes estes também em que, como justamente sublinhava Timothy Garton Ash, no El Pais (31/01/11), o modelo de capitalismo combinado com democracia liberal não se impôs uniformemente no mundo, como se pensava aí pelos tempos em que a Polónia comunista caía (e capitalismo e mão férrea do Estado, como acontece na China ou na Rússia, parece ser cocktail que fascina uns quantos e faz temer o perigar do modelo democrático tal qual o concebemos); por outro lado, surpreendentemente, temos um mundo árabe em que de repente os regimes desabam, nuns casos, abanam, em outros, e a sedução do ideal democrático revigora.
E do Egipto para Portugal: o reparo da semana não pode deixar de assinalar aquele que num instante se tornou – já é um cliché dizê-lo – um hino de uma geração. Apesar dos inúmeros artigos da imprensa e dos posts em blogs, dos vídeos no youtube, se ainda não ouviu “Parva que sou”, dos Deolinda, tem aí uma expressão a um tempo simples/directa/precisa do que a geração que saiu das universidades, digamos, na última década, pensam e sentem. Três minutos intensos.
Boa Semana
Pedro Seixas Miranda
Da Polónia para o Egipto. Por dois motivos essenciais: porque muitos viram no efeito dominó que parece gerar-se no mundo árabe, em favor de mudanças de regime, uma clara semelhança com o desmantelamento do mundo comunista (embora como tenha assinalado Freitas do Amaral, na Visão (03/02/11), já, antes, o Sul da Europa - Portugal, Espanha e Grécia - havia mudado de regime político, em cadeia); em segundo lugar, e especificamente, porque a resolução política que, pretensamente, agradaria à Irmandade Muçulmana, no Egipto, poderia passar, precisamente, por um pacto em mesa-redonda, envolvendo o regime e a oposição, emulando o que se passou na Polónia no inicio da década de 1980.
O caso egípcio, da natureza do regime e da sua confrontação com a natureza e a condição humanas, é, ainda, particularmente interessante de analisar sob o prisma lançado por Ross Douthat esta semana, no New York Times: não fora o regime tão opressivo, não fossem as cadeias egípcias o que eram e talvez o World Trade Center ainda estivesse de pé. Expliquemos, citando esse livro fundamental - para quem não queira os simplismos redutores acerca do fundamentalismo islâmico - que é A Torre do Desassossego, de Lawrence Wright, Prémio Pulitzer 2007: “há uma linha de raciocínio que defende que a tragédia que se viveu nos EUA, a 11 de Setembro, teve origem nestas prisões [egípcias]. Defensores dos direitos humanos no Egipto advogam que a tortura gerou uma fome de vingança (…) O principal alvo do ódio dos prisioneiros era o governo laico do Egipto; no entanto, havia igualmente uma forte corrente de ódio em relação ao Ocidente, que aqueles homens entendiam ser uma força motriz por detrás do regime repressivo. De facto, o tema da humilhação, que é o objectivo da tortura é importante para se compreender a raiva dos radicais islâmicos. As prisões do Egipto passaram a ser a linha de produção donde saíram militantes, cuja necessidade de retaliação – justiça, como lhe chamavam – os devorava inteiramente”( pág.63). Elemento-chave da Al Qaeda, Al Zawahiri foi um dos homens que passou pelas prisões egípcias e o seu principal biógrafo regista mesmo que foi esta passagem pelo cárcere que o fez passar de um moderado da jihad para um extremista violento e implacável.
Sabemos que as alegrias com a luta pela liberdade e, eventualmente, democracia no mundo árabe – sim, a liberdade é aspiração universal humana e não exclui nacionalidades, povos, civilizações - têm que ser calibradas com a percepção da precaridade das vitórias alcançadas e pelo condicional do futuro por nascer (logo, em aberto). Prudência, mas alegria. Até porque no Libération (02/02/11), Bernard Guetta aponta quatro novos elementos de desenvolvimento nos processos de mudança política em curso nos Estados islâmicos. Primeiro: despertar do Islão associado à ampliação daquilo a que chama os valores universais da democracia; segundo, o peso adquirido por uma juventude numerosa, descontente e impaciente, que recebe da Internet o impacto cultural da globalização; terceiro, a grande importância da actual Turquia, permitindo mostrar que islamismo, laicidade e desenvolvimento económico não são inconciliáveis/incompatíveis; quarto, sugere a implantação inevitável de um novo «xadrez democrático» que vai de uma esquerda activa e moderna a partidos religiosos conservadores mas capazes de superarem os sinais bestiais do islamismo (na síntese de Rui Bebiano, no blog A Terceira Noite). Tempos interessantes estes também em que, como justamente sublinhava Timothy Garton Ash, no El Pais (31/01/11), o modelo de capitalismo combinado com democracia liberal não se impôs uniformemente no mundo, como se pensava aí pelos tempos em que a Polónia comunista caía (e capitalismo e mão férrea do Estado, como acontece na China ou na Rússia, parece ser cocktail que fascina uns quantos e faz temer o perigar do modelo democrático tal qual o concebemos); por outro lado, surpreendentemente, temos um mundo árabe em que de repente os regimes desabam, nuns casos, abanam, em outros, e a sedução do ideal democrático revigora.
E do Egipto para Portugal: o reparo da semana não pode deixar de assinalar aquele que num instante se tornou – já é um cliché dizê-lo – um hino de uma geração. Apesar dos inúmeros artigos da imprensa e dos posts em blogs, dos vídeos no youtube, se ainda não ouviu “Parva que sou”, dos Deolinda, tem aí uma expressão a um tempo simples/directa/precisa do que a geração que saiu das universidades, digamos, na última década, pensam e sentem. Três minutos intensos.
Boa Semana
Pedro Seixas Miranda
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