Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

domingo, 21 de novembro de 2010

Futuro

É uma pergunta que perpassa os artigos dos jornais e as conversas de café, por estes dias: por que é que as revoltas estudantis que emergiram, ao longo desta crise, em França ou Inglaterra, não têm sucedâneo lusitano? Por outro lado, revisita-se a história, comparam-se estas manifestações com aquelas ocorridas em Maio de 1968 e as sucessivas réplicas desse movimento. No meu entender, de facto, a história oferece um precioso auxílio para equacionarmos aquilo que me parece mais importante: saber se tais manifestações têm um efeito útil e positivo, ou, se, na sua aparente bondade, podem esconder perigos que uma certa ausência de subtileza ignorará.
No pós-guerra, a seguir a 1945, um pouco por toda a Europa começa a erguer-se o Estado Social – que podendo em muitos casos situar-se em uma época pretérita, ganha aqui real densidade. Os partidos sociais-democratas e os partidos democratas-cristãos erguerão, então, uma rede de protecção visando obviar problemas como o desemprego, saúde, educação, segurança social, transportes, entre outros. Cada país terá as suas próprias especificidades nesta construção, mas há um consenso, um adquirido indisputado que não dividirá esquerda de direita, por esta altura, em torno do Estado-Providência. Devem sublinhar-se, como factores de prosperidade a seguir à II Guerra Mundial, o significativo crescimento demográfico, o crescimento limitado dos salários, a concertação social – abandonando-se o radicalismo de luta de classes – uma tributação progressiva, o investimento do Estado. Os que nascem a partir de 1945 e que chegarão às universidades em plena década de 60 serão já filhos de um bem-estar sem precedentes nas décadas anteriores ao seu nascimento (e, iremos percebê-lo adiante, sem repetição nas décadas posteriores á da sua passagem pelo ensino superior). Dão por adquirido esse bem-estar e começam a reivindicar face ao planeamento estatal e à burocracia (e aos burocratas) que entendem incomodá-los. O sentido colectivo, o olhar para o todo, uma visão de sociedade ou bem-comum como que parece agrilhoar a nova geração (e quase que apetece dizer, até hoje!). Que, assim, pretende desfazer-se de tais amarras. As suas reivindicações terão mais a ver com os horários de fecho dos portões das universidades, do que com qualquer opressão fabril – na imagem de Tony Judt, no seu Tratado Sobre os nossos actuais descontentamentos. Movimentos estudantis radicais espancam polícias em Itália, em nome da revolução (o que levará Pasolini a dizer, naquele momento, que está ao lado dos polícias, pois eles são os filhos dos pobres, enquanto, à época, a universidade está confinada a uma minoria, de classe média, sobretudo). Mesmo as manifestações relativas à guerra do Vietname tem, no olhar deste historiador, uma motivação puramente pessoal, já não se organiza em torno de um ideário comum, é expressão de uma revolta puramente individual/pessoal. Daqui ao relativismo estético e moral foi um passo.
O que levará um historiador que nunca escondeu a sua filiação ideológica na corrente social-democrata, no centro-esquerda, que escreve este libelo racionalmente apaixonado em defesa da ideia da social-democracia, exortando a que seja empunhada pelos jovens de hoje, a acusar a geração de radicais estudantes da década de 60 do séc. XX, a esquerda radical de então, de engendrar ela própria o começo do fim do sustentáculo (digamos, mundividencial) do estado-providência? Porque Judt compreendeu muito bem que este novo centramento em si, este recuperar do individualismo mais feroz – que levaria a colocar na agenda política a identidade, fosse ela cultural, fosse ela, p.ex., sexual – este querer afastar qualquer propósito de bem comum – cada um faça como entender – levará a uma antropologia, a uma compreensão egológica do homem, que tão maus resultados havia dado e que a história há tão pouco registara. E que – individualismo sem qualquer tipo de freio – havia sido considerada conditio sine qua non para o bom andamento da sociedade liberal e capitalista. Aparentemente sem se dar por ela, a esquerda mais radical, nos fundamentos de toda a ideologia, voltava a uma concepção antropológica que permitiria de seguida o avanço das teses mais liberais e de apoucamento e afastamento do Estado (nos escritos daquilo a que Judt chamou os nossos avós austríacos: Hayek, von Mises, Schumpeter ou Popper).
Para que se possa repropor o ideário social-democrata, a leitura do seu legado não pode senão ser exigente e crítica. Judt é particularmente sofisticado neste ponto. E penso nele quando ainda hoje uma agenda de costumes divide as pessoas em pequenos grupos – fechados – cada um com o seu interesse particular, com a sua reivindicação última, na sua identidade afirmada sofregamente, e em que um propósito global não se afirma; este falar para nichos constitui, em suma, a sua tragédia. Talvez vanguardista fosse hoje colocar de novo de lado uma antropologia que concebe o homem em colóquio consigo mesmo, fundamento de si próprio e sem prestar contas a ninguém, para reafirmar a natureza dialógica do homem ou até a exigência da primazia do outro (volta a ser tempo de reler Buber ou Levinas e de regressar ao “o que fizeste ao teu irmão?” de que fala o Evangelho). E as manifestações de hoje, por parte dos estudantes, só teriam verdadeira utilidade, a meu ver, se fossem concertadas a nível global-europeu, realizadas em função das gerações presentes e vindouras, caminhando-se, então, para o passo de partidos transnacionais antecipado por Ulrich Beck. Isto, se, entretanto, a UE não implodir, ou se, num passo ousado, viesse até a reforçar a sua consistência política. E nessa discussão para uma plataforma comum, este último testemunho que Tony Judt nos deixou – e a que voltaremos - mereceria, certamente, consideração.


Pedro Seixas Miranda

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