Estive este Sábado no Porto (06/11/10), na Casa da Música, a assistir a um concerto do Hespérion XXI, um agrupamento dedicado á música antiga, sob a direcção de Jordi Savall. Foi um concerto memorável, que, certamente, me acompanhará pela semana e permanecerá vivo por muito mais tempo. Savall dirige um grupo onde convivem turcos e gregos, arménios e marroquinos, franceses e espanhóis. Não é apenas uma convivência ocidente-oriente, em termos humanos. É, também, uma conjugação entre instrumentos de mundos diversos que ali se encontram. No início da segunda parte do espectáculo, Savall, com grande clarividência pedagógica, mostra o mestre que é: conta-nos, sucintamente, a história de cada instrumento, precisa o seu nome, compara o mesmo instrumento sob a égide de diferentes nacionalidades – um despique, por exemplo, entre a ney, a flauta turca, e uma outra flauta, mas arménia. Descobrimos novos instrumentos, novos nomes de instrumentos – todo o concerto foi instrumental – e novos sons (que belo o som de uma espécie de lira, do mundo árabe). Este concerto situou-nos no Império Otomano do séc. XVII. Procurou mesclar música do melhor que se tocava na corte, com o melhor da sensibilidade popular, á época. Tentou evidenciar-se o compromisso, um espírito de tolerância então existente. Este grupo combina bem, por outro lado, experiência e juventude entre os seus intérpretes, do melhor, segundo a crítica especializada, em cada uma das suas áreas. Cada composição começa numa espécie de solo instrumental, até ao culminar de uma beleza comovente de um todo enformado de uma evidente harmonia. Sem que se perca a singularidade, jamais dissolvida no conjunto, “conseguimos entender-nos”, regista, com plácida serenidade irónica, Savall. Como que a dizer-nos: na arte, ou através dela, há pontes indestrutíveis, há um entendimento universal, há uma hospitalidade recíproca. A arte, a música une, lá onde, por exemplo, a política não resolve. São as presenças reais, de que fala Steiner. Embora o Hespérion exista desde 1974, participando em todos os festivais de música, foi rebaptizado de XXI para o novo século, e bem se percebe da sua necessidade para o mundo, hoje. Sobretudo, pelo que vai de fecundo e profilático no amor devotado ao estudo exaustivo dedicado á música, ao seu contexto histórico, a toda a ecologia envolvente, procurando tornar vivificante – recuperação de música antiga, mas que procura não se fechar numa redoma para uma elite, mas popularizá-la – lendo, recuperando instrumentos – Savall utilizou dois violinos, cujo corpus principal datava do séc.XV – capazes de nos tocar ainda agora. O efeito, neste caso a partir do livro de Cantmir, músicas turcas, sefarditas, arménias, mas também ocidentais, foi muito conseguido.
Como ensina Roger Scruton, num ensaio sobre a beleza, desde Platão e Plotino (Éneadas), passando pela incorporação no pensamento teológico cristão (S.Tomás de Aquino), um trio de valores últimos justificam as nossas inclinações racionais: a Verdade, o Bem e o Belo. Na verdade, a beleza atrai. E atrai até ao Outro, e no Outro o Infinito. A cultura em que nascemos/vivemos não representa qualquer fim da história, não é a cultura. Deve, pois, estar aberta ao diálogo, conhecendo, é certo, para dialogar, as suas razões e os fundamentos últimos delas. “A inculturação pressupõe a potencial universalidade de cada cultura. Pressupõe que em todas as culturas opera a mesma natureza humana e nelas vive uma verdade comum que aspira á união (…) o propósito da inculturação só terá sentido quando se não faça a injustiça a uma cultura, quando ela, a partir da comum ordenação à verdade do homem, se abra e desenvolva através de uma nova força cultural. O que numa cultura exclui uma tal abertura e intercâmbio é, afinal, a sua insuficiência. A grandeza de uma cultura mostra-se na sua abertura, na sua capacidade de dar e receber, na sua força de desenvolvimento, de se deixar purificar e, através disso, tornar-se mais verdadeira, mais humana” (J. Ratzinger, Fé, Verdade e Tolerância, p.57).
A beleza não é mero esteticismo. É mysterium tremendum. A que não ficamos indiferentes. Que nos toca. Nos arranca. Nos move. Nos acompanha. Nos impele. A ficarmos insaciados e a perseguirmos a busca. A fazê-lo na paz. Enriquecendo-nos e enriquecendo o outro, também. A nunca estarmos sós. A termos a capacidade de empatia, no toque universal de acordes que nos inspiram. Em tempo de carestia e mágoa, o valor da beleza nunca deve abandonar-nos.
Pedro Seixas Miranda
Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
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