Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Entrevista a Manuel da Silva Grilo ao serviço da ONU, no Chade

“Por duas vezes a viatura em que seguia esteve na mira de roquetes das milícias que nos abordaram em plena savana, no meio do nada”


A ONU é uma organização internacional, cujos objectivos são a protecção dos direitos humanos, a manutenção da paz e a ajuda à autodeterminação dos povos.
No nosso país, a actividade desta organização é pouco divulgada. Dela apenas se conhece o que os media transmitem: grandes títulos e imagens que muitas vezes parecem distorcer a realidade. Para tentarmos conhecer um pouco melhor as actividades desta organização internacional, resolvemos entrevistar alguém que esteve no terreno ao serviço da ONU.
A pessoa escolhida para a nossa entrevista é o oficial superior da PSP, Manuel da Silva Grilo, cuja última missão no estrangeiro foi precisamente ao serviço da ONU, no Chade, República Centro Africana, de Junho 2008 a Junho de 2009.

P. Senhor Subintendente, pode-nos apresentar um breve resumo do seu trajecto profissional?
R. Sou um oficial superior da Polícia, actualmente na PSP de Vila Real. Entrei para a Corporação em 1980, com a categoria de agente e fui subindo na hierarquia, até ao actual posto de Subintendente. Desempenhei funções de comando de Esquadra, em várias cidades, prestei serviço no Corpo de Intervenção e fui docente na Escola de Polícia. Tenho uma licenciatura em Filosofia, pela Universidade Católica, outra em Direito pela Universidade de Coimbra e um Mestrado em Patologias Psicossociais. Fui Adido de Segurança na Embaixada Portuguesa na República de S. Tomé e Príncipe e a minha última missão no estrangeiro teve lugar no Chade, ao serviço da ONU.

P. Quando era mais novo, alguma vez se imaginou a participar numa missão da ONU?
R . Quando era mais novo, nunca pensei participar em missões da ONU. Primeiro, porque a organização nunca foi muito divulgada no nosso país (e portanto é pouco conhecida); depois, porque a selecção para as missões, no caso das forças de segurança, é feita pela hierarquia, de entre um universo de centenas de indivíduos que reúnem condições para serem seleccionados. Estes pressupostos, contribuíram para um certo alheamento da minha parte, relativamente às missões da ONU.

P. Quais foram as razões que o levaram a participar nesta missão?
R. A juventude de todas as épocas tem sempre latente o sonho de partir à aventura, conhecer novas culturas, novas gentes. As missões da ONU são uma oportunidade de aventura e ao mesmo tempo desenvolvem os valores de solidariedade, liberdade, espírito de sacrifício, respeito pelos direitos humanos, contra o racismo e a discriminação. Enquanto jovem, não consegui materializar esse sonho, no entanto não ficou esquecido. Quando surgiu a oportunidade, o espírito de aventura veio ao de cima e ofereci-me para servir nas missões da ONU.

P. Antes de partir para o Chade teve algum treino específico?
R. Cada missão tem a sua própria especificidade: se é humanitária ou de manutenção de paz; se se localiza no continente europeu ou em África. Assim, é ministrada uma formação teórica, sobre os cenários possíveis que se podem encontrar. Quanto ao treino para lidar com as situações, esse faz parte da formação policial de base. Mas, quando se chega à missão, durante o primeiro mês, a estrutura da missão ONU ministra o treino necessário, desde a condução de veículos todo o terreno, em ambientes hostis, até à orientação no terreno desértico.



P. Quais eram as condições em que se encontrava o contingente da ONU no Chade?
R. Uma missão é constituída por uma parte logística, assegurada pelo staff internacional, ou seja, pelos funcionários permanentes da ONU, e uma parte operacional, constituída pelos vários contingentes, dos diversos países, representados na missão. Assim, se houver dez nacionalidades, há dez contingentes, ou seja, as nacionalidades presentes agrupam-se em contingentes. Porém, as funções são distribuídas de acordo com as qualificações de cada um e não por se pertencer a um contingente de determinado país. Quando cheguei ao Chade, o pessoal da ONU ainda se encontrava concentrado na capital, N´djamena, a dar formação aos futuros polícias chadianos que iriam dar protecção aos refugiados. Depois da minha chegada, foram-me atribuídas as funções de Chefe das Operações e desde logo comecei a planear o envio dos polícias da ONU para os campos de refugiados e, em poucas semanas, a maioria deixou a capital em direcção aos campos de refugiados.

P. Em que medida se pode afirmar, ou não, que o contingente em que se encontrava era um contingente multi-cultural?
R. As missões da ONU, para além dos funcionários permanentes e contratados, são sempre constituídas por pessoas de várias nacionalidades. No meu gabinete, por exemplo, tinha dois adjuntos, um coronel de Madagáscar e um coronel do Senegal, para além de um comissário da Costa do Marfim e um capitão do Iémen; todos eles eram muçulmanos.

P. Quando chegou ao Chade, em que condições encontrou a população residente nos campos de refugiados?
R. Os refugiados, aproximadamente meio milhão, são quase na totalidade oriundos do Sudão, mais propriamente da região do Darfur, e por isso são considerados estrangeiros no Chade. Sem a protecção da ONU, a maioria destas pessoas não sobrevivia devido ao ambiente hostil, à falta de recursos e aos ataques das milícias muçulmanas sudanesas. Quando cheguei à zona de missão, grande parte dos refugiados já tinha assistência de organizações humanitárias voluntárias, que prestavam assistência. No entanto, a segurança daquelas populações era praticamente inexistente, havia inúmeras queixas de violações, homicídios, roubos e muita violência, dentro dos campos de refugiados. A partir da chegada da ONU, só muito esporadicamente ocorriam crimes.

P. O Darfur, juntamente com outras regiões adjacentes, é considerado uma das zonas mais violentas do Mundo. Durante a missão, alguma vez se encontrou numa situação perigosa, na iminência de ser ferido ou mesmo em risco de perder a vida?
R. Uma das minhas funções era inspeccionar o serviço prestado pelos polícias da ONU nos campos de refugiados. A deslocação era feita por avião durante duas horas para uma cidade secundária do Chade e a partir daí por helicóptero para a localidade mais próxima; depois continuava em viatura todo o terreno até aos campos de refugiados. Um dos campos de refugiados estava situado a cerca de 50 quilómetros da localidade mais próxima e o trajecto era feito em terra batida. Por duas vezes a viatura em que seguia esteve na mira de roquetes das milícias que nos abordaram em plena savana, no meio do nada, porém acabaram por deixar passar a viatura depois de verificarem que não transportávamos armas pesadas.

P. Os rebeldes Janjaweed cometem crimes muito violentos, como aconteceu em Março de 2004, em que 16 raparigas foram violadas por vários homens na cidade de Kutum. Enquanto esteve no Chade, alguma vez presenciou actos desumanos?
R. A esse nível, nunca presenciei tais atrocidades. No entanto, presenciei comportamentos violentos para com as crianças nas escolas corânicas. Por diversas vezes, vi crianças de 4 e 5 anos a serem chicoteadas violentamente por adultos por não saberem recitar os versículos do Corão. Este tipo de violência é tolerada pelas sociedades islâmicas, faz parte da sua cultura. Outro comportamento estranho para nós, ocidentais, é o facto de obrigarem os alunos das escolas corânicas a mendigar pelas ruas durante um período do dia, sendo o produto da mendicidade distribuído pelo professor e pelo pai do aluno.

R. Esteve no Chade um ano. Durante esse período fora de Portugal do que é que sentiu mais falta?
P. Durante a missão, aquilo de que senti mais falta foi da minha família.

P. Como avalia o resultado da intervenção da ONU no Chade?
R. A intervenção da ONU no Chade foi extremamente importante para a protecção do meio milhão de refugiados sudaneses que se encontravam no Chade. Sem essa intervenção, milhares de pessoas não teriam sobrevivido. Para além disso, a ONU muito tem contribuído para encontrar uma solução política para o regresso dos refugiados ao seu país.

Guilherme Fontinha, nº 15, 10º B
Tiago Grilo, nº 26, 10ºB

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