Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Apresentação das " Histórias que o povo tece", de Hercília Agarez

Publicamos aqui, na íntegra, o trabalho da Dr.ª Ana Paula Fortuna sobre as " Histórias que o povo tece", com a chancela da Editora Lema d'Origem.
Desde já agradecemos à Dr.ª Ana Paula Fortuna este gesto, assim como ao fotógrafo, Paulo Fortuna.


Hercília Agarez, autora de Histórias que o povo tece, e o editor / escritor, António Sá Gué.



Dr.ª Hercíla Agarez, Dr.ªAna Paula Fortuna, Dr.ª Fátima Manuela, Diretora da Escola, e António Sá Gué.




Há uma música do povo,/ Nem sei dizer se é um fado / Que ouvindo-a há um ritmo novo / No ser que tenho guardado. Estes são versos deste belíssimo fado entoado por Mariza e que são da autoria do nosso querido poeta Fernando Pessoa. Fala-nos do povo, da música, do ritmo novo que esta imprime ao ser que todos guardamos na memória. Que relação com este livro? Toda. Primeiro este livro cheira e sabe a povo, tem a sua melodia. Em segundo lugar, se atentarmos no título da obra, somos imediatamente transportados para o poema do insigne poeta Fernando Pessoa O Menino de sua mãe, mais precisamente para o verso grafado entre parêntesis (Malhas que o império tece). E então? Histórias que o povo tece, histórias construídas malha a malha pela inteligência do narrador que ora se revela em comentários bem-humorados, irónicos ou afectuosos, ora se esconde, dando ênfase às personagens. Do império nada mais resta que o povo e a sua língua que, segundo o mesmo poeta, é a nossa pátria.


Segundo Renan, O que faz com que os homens formem um povo é a lembrança das grandes coisas que fizeram juntos e a vontade de realizar outras. Perdoem-me por tentar fazer política… eu que, em toda a minha vida, apenas quis ensinar. Ao que parece a História, isto é, a memória interessa pouco actualmente, o pensamento menos ainda, porque as reflexões incomodam, a língua muda-se ao sabor dos números e o poder dos números conduziu-nos ao ponto em que estamos. Teremos vontade de realizar outras grandes coisas? Talvez. A História que eu aprendi diz-me que sim, que os meus avós conseguiram. Mas eu tenho memória… E as gerações vindouras, amputadas do passado, continuarão a ser povo? Conseguirão ser Pátria? Não sei.
Tenho esperança que o registo escrito destes contos permitam a alguém futuramente reconstituir o que pouco a pouco está a ser destruído e que estes possam constituir memória deste Povo e desta Pátria desaparecidos no combate dos números, essa terceira guerra mundial de que ninguém parece aperceber-se. Por isso os livros são histórias e também História e, consequentemente memória.
Mergulhar nos clássicos é, sem dúvida, ter o prazer da descoberta de um passado que se revela frequentemente presente, às vezes tragicamente actual. Recordemos os Vencidos da Vida em Os Maias de Eça de Queirós ou a definição do povo português de Fernando Pessoa, inserta num texto sublime pertencente ao livro Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional e que passo a citar “Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina (…) Parecemo-nos muito com os Alemães. Como eles, agimos sempre em grupo, e cada um do grupo porque os outros agem. Por isso aqui, como na Alemanha, nunca é possível determinar responsabilidades; elas são sempre da sexta pessoa num caso onde só agiram cinco.(…) Somos incapazes de revolta e de agitação. Quando fizemos uma “revolução” foi para implantar uma coisa igual ao que já estava. Manchámos essa revolução com a brandura com que tratámos os vencidos. E não nos resultou uma guerra civil, que nos despertasse; não nos resultou uma anarquia, uma perturbação das consciências.(…) Portugal precisa dum indisciplinador.” Portugal precisa de perturbadores de consciências e os escritores são-no ainda que o não queiram porque contam histórias que contam História e memória. Mais uma vez a memória e é dela que nos fala Pessoa à entrada do livro de Hercília Agarez, numa quadra popular, que reza assim Quantas vezes a memória / Para fingir que inda é gente, / Nos conta uma grande história /Em que ninguém está presente. Não falávamos há pouco de actualidade? A quem passará a avó as histórias / História deste país? Às outras avós… até que se apaguem no tempo. Onde estarão os jovens deste país? Nos mesmos locais onde estiveram os seus ancestrais. Afastei-me do tema? Não, não. Mais adiante veremos que estou a falar do livro e naturalmente do povo que o motivou.
Foi com o povo e com a tradição oral que tudo começou. Era à lareira que se ouviam as histórias que os diferentes membros da família contavam, revezando-se na tarefa para não tornar monótonos os serões. Contudo, existiram sempre os exímios contadores de histórias que agregavam à sua volta toda a gente, pelo toque especial que conferiam às suas narrativas, interagindo com os ouvintes sequiosos das suas palavras. Esta é a experiência que vivenciamos, quando lemos Histórias que o povo tece de Hercília Agarez. A autora partilha connosco quinze histórias na sua maioria divertidas, temperadas com o humor e espírito crítico que lhe são característicos.
A literatura de tradição oral viveu destes episódios narrados de geração em geração, contados pelos mais velhos aos mais novos que, depois, por sua vez, se encarregavam da transmissão da sua herança.
A escrita viveu inicialmente nos mosteiros com os copistas que paulatinamente cumpriam a sua missão. Os livros eram raros, não interessavam a todos e só conheceram mais gente depois da maravilhosa invenção de Gutenberg. Grande serviço foi então prestado à literatura de tradição oral que pertencia apenas à memória de alguns e aos registos de muito poucos. Grande serviço nos foi prestado por podermos aceder a toda a informação desde então registada. Um serviço que também a autora presta às gerações vindouras ao deixar em livro os costumes e tradições de uma época que podem resultar estranhos à nova geração (ou talvez não, pois provavelmente assistiremos a muitas dessas coisas que pensávamos arrumadas definitivamente no passado).
Haja possibilidade de comprar livros e sempre teremos memória. E desta vez não estou a falar de política, estou a falar de saúde, outra área em que, como sabem, estou perfeitamente à vontade. É que de acordo com os mais recentes estudos quem lê tem menos probabilidades de vir a sofrer de Alzheimer. Os benefícios da leitura são indiscutíveis, não sendo por acaso que os Estados totalitaristas sempre abominaram o livro por este representar memória e provocar as mentes. Há que ler e visitar as bibliotecas que, felizmente, têm horários cada vez mais alargados.





Divaguei talvez um pouco… Ou talvez não, se pensarmos que o livro que estamos a conhecer é fiel depositário de memórias e um interessante tributo à literatura de tradição oral. Dirão talvez neste momento: mas ela ainda não falou do livro…
Falei, falei. Falei de gente jovem que parte à procura de oportunidades, tema aflorado nos contos A licença de caça e A Tia Ana Mocha e o euro, tratado mais largamente em O Padre da Penana pessoa do Zeferino, o “portuga” de fato e sapatos claros, moreno de pele, de trejeitos amaneirados, dois dentes de ouro, indício de uma riqueza suada em terras do samba e dos coqueiros e deliciosamente conseguido nesta passagem de História de um violino:
A Preciosa tinha ido para a Suíça com o homem, o Ilídio da tia Zefa. Por lá se enraizaram, lá lhe nasceram os três filhos, ganharam bom dinheiro a trabalhar numa fábrica de relógios e da aldeia nem sombra de saudade. Vinham aí passar uns míseros quinze dias de dois em dois anos e estavam tão mortos pelo dia da partida como a mãe por os ver pelas costas.
Aquela canalha estrangeira não a sentia como sua. Daquela algaraviada que falavam, não entendia patavina e, desconfiada, pensava que estavam a fazer pouco dela, das roupas humildes, do poupo, do avental, das socas e da maneira de ajeitar o lenço na cabeça.
Um dia perdeu a paciência. Os dois netos mais miúdos desataram a abrir as goelas como se estivessem a esfolá-los. Guinchavam ao desafio e aquela gritaria tinha vindo para ficar.
Não se conteve:
– Carago! Rais partam nos fedelhos! Ao menos a berrar falais todos a mesma língua…
Falei de gente menos jovem que não tem a quem deixar testemunho, servindo de exemplo o excerto ora lido.
Falei da situação a que nos conduziu o poder dos números, esta crise de que só nos pode tirar Edmundo, excelso antecessor da Troika em Portugal, conhecido por Padre da Pena e muito dado a medidas drásticas. Tão conhecido era pelo seu anúncio que sempre que alguém falava em proceder a quaisquer cortes ouvia sempre a recomendação: - Vê lá não faças como o Padre da Pena. Querem saber mais? Leiam.
Falei de política, embora a contragosto, tal como a Tia Ana Mocha que só se interessava por ela na hora de derrotar os hereges, estando perfeitamente ciente de que, e estou a citar, Eles são todos uns lambões, o que querem é encher a mula à nossa custa. A mesma senhora a quem a vida tornou desconfiada e que, por isso, recusava a mijoca dos pacotes, só bebia vinho sem matragela e nem queria ouvir falar do estupor do euro que só lhe veio atazanar a paciência. Enfim não era de modas.
Por falar em modas, talvez a Zulmira de Quando gordura era formosura escapasse ao seu destino trágico. A sua comparação com uma tábua, que tinha tanto na frente como nas traseiras, não teria certamente o mesmo impacto nod dias de hoje.
Falei de ensino. Não deram conta? Tudo relacionado com cortes, não os do Padre da Pena, mas as que a tutela se propõe fazer para poupar “uns troikos”. Só que falei do lado menos interessante do ensino, o que não acontece em boa parte dos contos deste livro em que as professoras têm sempre algum papel ou característica relevante. Atente-se na boa dona Germana preocupada com o insucesso total do Hernâni, aquando da visita do Senhor Inspector Taveira vigiada pelas figuras de Tomás e Salazar bem perfilados e de cara lavada (mais uma referência histórica), na D. Purificação, professora à moda da época, tão pronta a pregar um estalo certeiro num aluno como a encher-lhe a barriga de caldo e broa se fosse necessitado, na D. Cacilda, a professora do ensino primário, de mãos sábias, raramente usadas para empunhar a palmatória ou a cana-da-índia, com tendência para o fabrico no feminino e um caso de abundância láctea que bem valeu a Timóteo, o filho da Francisca do Vai-ou-Racha, ou em Margarida, a dedicada professora que considerava a escola a sua segunda casa e os alunos os filhos que nunca tivera, mas que tinha um problema de atitude em relação ao regime como se pode verificar nesta passagem Se pudesse, teria dispensado as presenças seráficas e bisbilhoteiras de suas excelências os senhores presidentes da República e do Conselho de Ministros. Felizmente estavam os imponentes retratos colocados na parede atrás da secretária, pelo que, ao virar-lhes as costas, ninguém poderia acusá-la de desrespeito pelo regime que, no íntimo, abominava.
Não falei, mas devo ainda falar de temas como o da sexualidade, muito presente no livro, e de que não resisto a ler uma passagem:
Perto da república, morava uma rapariga bem afreguesada que se apaixonava pelos homens apessoados, jovens e generosos com quem dormia meia dúzia de vezes. Se pudesse escolher, só aceitava estudantes por lhe agradarem as suas falas bonitas e os seus modos civilizados. Com o bracarense, cheiroso e especia­lista em preliminares, o caso começava a tornar-se sério.
Certa noite ela atreveu-se a perguntar-lhe se gostava dela e se não queria ser o seu cliente exclusivo. Ele respondeu evasi­vamente, reafirmando o prazer que ela lhe dava, repetindo os encantos sensuais do seu corpo e a excitação que lhe dava a sua entrega quase feroz. E por aí se ficou.
– Pois ficas a saber que para mim morreste!
Eram três horas da madrugada. Ele saiu da cama, sorrateiro, atravessou o quarto em pêlo em direcção à casa de banho, ves­tiu-se, penteou-se e encaminhou-se, a passo lento, para a porta de saída.
– Para onde vais a estas horas? – gritou, meio histérica, a Ernestina.
– Respeitinho, menina, não vês que vai a passar um funeral?
A propósito de funerais, o tema da religiosidade, tão caro ao povo, está também muito presente neste livro, umas vezes misturando o sagrado e o profano, outras vezes alternado nas rotinas, como acontece em Memórias da Quinta da Touriga, que passo a citar:
– No quarto mistério contemplamos a Assunção de Nossa Senhora ao céu.
– Avé Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito o fruto do vosso ventre, Jesus...
– Rosalina, não te esqueças de pôr o bacalhau de molho.
– Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós, pecadores…
– Pai-nosso, que estais no céu…
– Não tires tanto às batatas, Aurora.
Pão nosso de cada dia nos dai hoje…
– Ó Guilhermino, amanhã vai ao Quim das Patilhas, que te corte essas repas.
– No quinto mistério contemplamos…
Neste momento já todos cabeceavam e bocejavam. O esforço para manterem os olhos abertos era enorme, a começar pela patroa, que aproveitava a cruz do terço para escarafunchar os ouvidos.
Outros temas poderiam ser referidos, todos eles trabalhados com a mestria da autora que sempre lhes imprime o seu cunho pessoal e intransmissível.
A linguagem é sempre especializada: popular na voz do povo, cuidada na voz do narrador, a quem não falta vocabulário específico da vitivinicultura e de outros temas.
O conhecimento neste livro é muito e extremamente proveitoso, não faltando referências à cultura e literatura francesas particularmente caras a todos os que são cultos.
O narrador conta as histórias em terceira pessoa num aparente distanciamento, traindo-se, no entanto, no conto Xanica: Dos Pergaminhos aos afectos precisamente pelos afectos que exigem uma primeira pessoa na recepção de uma gata que se estava nas tintas para os pergaminhos aristocráticos, optando pelo fofo dos regaços e pelas carícias da plebe.
Atente-se, entre muitos outros aspectos de destaque, no pitoresco dos nomes desta gente com quem terão de conviver na leitura desta obra: do lado dos pergaminhos, a Menina Benvinda do Céu Pureza da Cunha, Senhora D. Leogevilda Boaventura de Castro Noronha, Menina Cândida Inocência do Espírito Santo, Senhora D. Florência Augusta Mendes Alvarenga, Senhora D.Piedade da Purificação Trindade Palmela, Senhora D. Hermenegilda dos Anjos Silvestre, esposa do Dr. Acácio Tiradentes Silvestre (por mero acaso médico odontologista) e, do lado do povo, Manel Hortelão, Quinhas da Eira, ti Zé da Mula, Artur Pastor, Ana Pinta, Micas Tecedeira, Rosa Correcha, Berta do Arnesto,Rodas Baixas, Tonha Pinguinhas, Chico da Venda, Rita Ratada, Bento Moleiro, Rufina Parreca, Teresa Fazminga, Zé das Iscas, António Grilo, Marcelino da Quelha Torta, Zé da Poda, Júlio da Manca, Preciosa Nabiça, Terêncio da Mestra,Francisca do Vi-ou-Racha, Jeremias Bigodes, Afonso da Biquinha, Arlindo Zarolho, Berta Coruja, entre outros.
Não sei se esta é uma guerra de classes, nem quem sai vencedor, mas nestas coisas há sempre um equilíbrio, até na rivalidade entre aldeias que aparece num aparte do narrador no conto Escrever direito por linhas tortas:

[A propósito desta aldeia, próxima de Vila Real, na estrada para Murça, não resiste o narrador a contar um episódio bur­lesco. Famosa pelo seu cruzeiro e, sobretudo, pela sua fonte romana, causava a inveja aos de Merouços e de Alvites que, para arreliar os habitantes, lhes diziam: “Sanguinhedo é terra de putedo.” A resposta à letra era difícil, por dificuldades rimáticas, pelo que se limitavam a mandar os vizinhos àquela terra escrita em letra minúscula e para onde são tantos os mandados como para o melhor destino turístico…]
À boa maneira do povo…
Resta-me terminar, com uma citação de Maquiavel: Para bem conhecer a natureza dos povos, é necessário ser príncipe, e para bem conhecer a dos príncipes, é necessário pertencer ao povo.
Boas leituras!

Vila Real, 4 de Novembro de 2011

Ana Paula Fortuna

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