Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

sábado, 20 de março de 2010

NÓS, PORTUGUESES, MAR PROFUNDO – ou como D. Manuel Clemente nos retrata


O mote de Portugal e os Portugueses, de D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, Prémio Pessoa 2009, não deixa de encerrar uma dimensão paradoxal de que é feita, como Chesterton sabia, a verdade – em vez de uma infinita capacidade de adaptação, nós, portugueses, demonstramos uma (quase) impossibilidade de deixarmos de ser quem somos (pág.9); mas o que somos é uma plasticidade dos outros, de todos os outros – mouros e judeus, moçárabes e galegos, nórdicos - que nos deram origem. De tal sorte que “não temos de nos adaptar por aí além, porque já temos dentro e acumulados os infinitos aléns que nos formaram (…) já não é propriamente adaptação, antes conaturalidade” (pág.13).
A relação dos portugueses com o sagrado, os portugueses (também) enquanto crentes, (os) portugueses porque crentes, em grande medida o cerne do retrato de Manuel Clemente, cabe, desde logo, no olhar para o próprio país, na pré-compreensão “bíblica” de Portugal: uma entidade “portadora de alma” e com “missão universal”. Aqui, converge a análise do historiador com muito do diagnóstico que tem sido proposto para nos explicar: há “ressentimento” no olhar que trazemos no excesso de memória, na memória do que fomos e podíamos voltar a ser, ou seja, “todos nos embebemos de um Portugal que não achamos”. Um Portugal que foi melhor na poesia (aliás, segundo a poesia) do que na prosa, um país “mais feito do que construído, mais desligado da prosa e das contas”. Em síntese, “a melhor ideia que temos de nós próprios advém da poesia (Camões), mais do que da prosa (Eça). Quando nos relacionamos bem com Portugal fazemo-lo mais sentimentalmente do que mentalmente”. Objectar-se-ia: a vã glória, a cobiça desmedida (dos monarcas) é denunciada pelo Velho do Restelo (Camões), e As cidades e as serras (Eça) não deixa de conter elementos “poéticos”, como Clemente reconhece, sobre Portugal; além do mais, este dualismo sentimento/razão, poesia/prosa não enforma/enferma de um simplismo e de uma compreensão pouco rigorosa do objecto sobre o qual se detém (prosa e poesia)? Mais: não foi outro ilustre português do nosso tempo, António Damásio, a colocar a ênfase na necessidade de sentimento na (boa) razão?
Portugal, a crença, a religião e a História: no Antigo Regime, a sociedade reúne-se à volta do religioso; com o regalismo, o despotismo iluminado, D. José, o Marquês do Pombal, a reforma no ensino, o anti-jesuitismo – cujas razões últimas, muitas vezes obliteradas, não deixam de ser equacionadas por Manuel Clemente – atinge-se, em Portugal, na leitura do nosso autor, o primeiro estádio do anti-clericalismo. No século XIX, já não é o jesuitismo o alvo da contestação; esta alarga-se: todas as congregações religiosas serão repudiadas. “A vida religiosa vai ser posta em causa pela Revolução Liberal” (pág.26). A densidade da observação de D. Manuel Clemente integra-nos no contexto histórico-filosófico-mundividencial em que, então, nos situamos: “para o homem herdeiro da Revolução Francesa, herdeiro da Ideia de Natureza e de Indivíduo que fervia no fim do séc.XVIII e no princípio do séc.XIX, o facto de alguém se prender por votos a uma congregação é um contra-senso, sobretudo quando condicionado pelo meio e a família” (págs.26/27). A argumentação anti-clerical servirá vários fins: da defesa do Estado, à defesa da ideia de liberdade, ameaçada pelo reforço eclesial do Papa (aqui, Herculano; mas o concílio de Trento, que reforça Roma, dará também grande polémica com as Conferências do Casino e As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, de Antero).
Mas que Portugal é este que os sécs. XVIII e, sobretudo, XIX, colocam em causa? Manuel Clemente responde: um Portugal que se forjou por entre uma querela doutrinária/teológica – “no séc.XII, no contexto peninsular e português da Reconquista, a crítica islâmica à doutrina cristã sobre Jesus e Maria levou os fundadores da nossa nacionalidade a afirmá-la ainda mais e a redobrarem a sua devoção mariana (pág.47) (…) «Louvor e honra a Deus e da Santíssima Virgem Maria» no contexto não é só forma jaculatória. É intenção verdadeira e apologética, culto que distingue uns dos outros e nesse sentido ajuda a recortar um território e a fundar uma pátria (…) tinha na altura suficiente carga visceral e emotiva para o fazer e galvanizar (pág.49) (…) o nosso período fundacional teve uma particular intensidade mariana, que lhe adveio do facto de passar exactamente por Maria, na sua relação dogmática com Cristo, Deus humanado, uma fronteira mental que repudiava uns e incentivava outros a afirmarem-se mais” (pág.55) – e que conta com um culto mariano de inquestionável vivacidade. Que, se não se distingue pela absoluta originalidade no âmbito europeu, não deixa de contar com especificidades muito próprias: não é já um culto individual ou pessoal, partilhado por muitos, é verdadeira “devoção nacional”, Maria a quem se oferecem vitórias, Maria em quem se deposita a esperança na adversidade, Maria respaldo de fracassos, Maria a quem se erguem templos, Maria a quem se consagram as Sés…Maria, Maria, Maria…Portugal é mariano. Dois capítulos de Portugal e os Portugueses a tal culto dedicados – um dos quais, o mais extenso da obra em apreço – não podiam deixar de produzir uma intuição penetrante: “Maternidade-Assunção-Conceição: será excessivo entrever na sucessão destas tónicas invocativas alguma simbolização do percurso histórico português? Ver na Maternidade de Maria a tutela do povo nascituro ou nascente? Na Assunção a do nosso crescimento, consolidação e máximo levantamento, mundo além? E na Imaculada Conceição, primeiro e prévio fruto da redenção cristã, o sinal da refundação portuguesa de Seiscentos?”.
Após o excurso mariano, D. Manuel Clemente não deixa cair a relação mútua, par-a-par, entre o cristianismo e Portugal. Diríamos que do paralelismo, passamos á parábola. Porventura, sugerimos, o capítulo mais “poético”, mais belo, mais “profético” – para utilizar a expressão encontrada por José Tolentino de Mendonça, em entrevista a Maria João Avillez (I, 26/12/09), para caracterizar D. Manuel Clemente, a propósito da obra que vimos apresentando – de Portugal e os Portugueses. Chama-se O cristianismo é uma realidade ribeirinha. Mar profundo. O do Cristo nascente, na geografia que o acolhe. O que Cristo propõe. O de embarcar. Sair de si. Ir ao encontro dos outros. Ondas revoltas. Estranhas. Temíveis. Mar que mesmo os discípulos sofrem. Perante o qual quebram. “Em Jesus, o mar é apelo de liberdade. O mar torna-se assim, com Cristo e no Cristianismo, a feição do mundo e da comunhão universal (…) o cristianismo foi um mar, transformou a própria terra em mar, qual novo dilúvio onde se afogassem todos os atavismos” (págs.77/78). Mar profundo. Nós portugueses. Habitantes do mar. Nómadas de influência judaica. Evangelizadores. Destruidores. Bons e maus. Perpétuo movimento. Arriscamos. Desde o séc. XV “nunca mais deixámos de partir e às vezes – regressar. Mesmo cá dentro, embarcamos sempre (…) Mas as àguas de então tinham o brilho esmeraldino de uma esperança última”(pág.80). A comparação enunciada sobre o manto infinito do oceano – e do peixe, ou melhor, mais ainda, o Ictus – é, de imediato, concretizada: “nunca a aventura portuguesa se pareceu tanto com a paixão evangélica, porque se tratava de gente cristã e porque a Esperança cabia toda em Deus”.
Ao céptico que apenas vê proselitismo nas palavras do Bispo do Porto, introduza-se, então, um contributo recente de Pedro Calafate, Prof. De Filosofia na Faculdade de Letras da Univ.Lisboa, no primeiro Volume de Portugal como Problema – séc. V-XVI a afirmação de um destino colectivo (edição Flad/Público, 2006). Para este estudioso, a ideia de Império (português), “expressão política da unidade de sentido da história e do unilinearismo do tempo”, é, claramente, tributária da filosofia cristã da história, “condição de inteligibilidade das nossas lendas fundadoras e da génese da nossa consciência histórica”, consubstanciada em, entre outras, teses como o “universalismo”, radicado na comum “paternidade divina”; “redução de toda a matéria histórica a uma unidade de sentido e concepção unilinear do tempo”; “a escatologia, ou seja, a importância da história do futuro” (págs.50 e 51). Sem o necessário entendimento de tal mundividência cristã, a par, é certo, de um vasto conjunto outro de realidades (e interesses) económico-sociais, não se percebe a empresa portuguesa.
É na humildade que Clemente observa as nossas características: sim, apresentamos especificidades, mas não estamos à margem do mundo. Parece, às vezes, vaguear pelo mar do povo eleito – afinal, caminhamos lado-a-lado com a barca de Cristo – mas logo nos encontra humanos. Mas corajosos. “Fomos como todos, com bravura e medo, com ciência e sorte, grandes ou mesquinhos, santos ou vilões, mas fomos. E no partir houve ainda o Evangelho. Tocaram-se as duas histórias, a portuguesa e a da Igreja, na mesma fronteira marítima e na mesma necessidade a transpor” (pág.82).
Para o homem de Igreja, aqui sim, não o podemos deixar de ler nessa qualidade, o melhor de Portugal foi o encontro com o Evangelho: a luta contra a escravatura, com profetas como Vieira (e sobre a controvérsia de então relativamente á escravatura, entre muitos outros, leia-se, p.ex., Eduardo Lourenço, em A Morte de Colombo); na aproximação cultural, estudando línguas e escritas da América ao Japão; adoptando trajes e modos “para que a missão fosse essencial e próxima”.
Por fim, não nos poderíamos, hoje, conceber sem a presença europeia. A partir do texto Ecclesia in Europa, de João Paulo II, D. Manuel Clemente reclamará os valores cristãos como os que “estimularam o progresso da ciência, direitos humanos e democracia” e o leitor mais abrupto recordará Galileu e a Inquisição. Mas os exemplos de Clemente são claros, pouco originais, mas razoáveis: “igualdade original de todos segundo o génesis”, “bem como a distinção evangélica entre César e Deus” foram legados inestimáveis para o mundo em que vivemos e queremos viver, e que, aliás, demoraram demasiado a ser compreendidos e interpretados – pela Igreja, inclusivamente. Ainda com a Constituição Europeia em fundo, a exortação de que “bem será que o continente continue a reconhecer a fonte e lhe continue a aurir a seiva” (pág.104).
Última, mas muito significativa nota de Manuel Clemente: o ecumenismo. Um dos factores mais relevados para a atribuição do Prémio Pessoa, o diálogo e abertura ao outro, é aqui exposto com particular argúcia. Vejamos porquê. Aos que atribuem à religião a maternidade de todas as guerras, Clemente, usando do domínio histórico, mostra as diversas motivações que suportaram vários conflitos ditos religiosos, ou como príncipes católicos se aliaram a protestantes contra outros princípes católicos, como cristãos se uniram a muçulmanos de quem se sentiram mais próximos; aos que dizem demasiada religião, contrapõe Clemente: “a solução para os fanatismos é melhor religião”; aos que citam cartas, de séculos longínquos, para demonstrar uma dada interpretação errada de uma confissão religiosa, prefere Clemente um registo epistolar do séc.XI entre Gregório VII e An-Nasir, em que o Papa e uma autoridade muçulmana de então, convergem e se saúdam mutuamente pelos esforços em prol de irmãos que professando um credo diverso são ajudados por alguém que vê a diferença com naturalidade (e aqui, embora á posteriori e assim deslocado, o leitor poderá ser levado a percepcionar a outra face da moeda de Ratisbona); neste sentido, “é inegável (…) que a religião em si mesma consegue tornar-se factor de unidade universal, quando religa o crente ao princípio vivo e único, não só de si próprio, mas de todos os membros da humanidade comum (…) a afirmação do Absoluto relativiza as diferenças pessoais”; revendo-se em Paul Ricoeur, trá-lo á colação no método ecuménico: “o diálogo entre confissões pode ser desenvolvido a partir de um ponto fixo: a consciência de que a nossa interpretação é limitada. Sobre este pressuposto se fundamenta o respeito recíproco”. Sempre se diria com Ratzinger: tal afirmação não pode excluir a confiança numa razão – forte, porque aberta á transcendência – capaz de aceder á verdade; o diálogo pressupõe um conhecimento sólido do que estamos dispostos a conversar.
Escolhemos para última frase a sublinhar, de Manuel Clemente, aquela que pode ser entendida como chave de compreensão de um pensamento, expresso nesta obra: a religião tem uma “capacidade demonstrada de compatibilizar o universal e o particular”. Neste caso, partindo do universal sobre o humano, esse universal cristão em que se situa, Clemente constatou um português incapaz de sair de si…que é todos (ser tudo de todas as formas, reclamava Agostinho da Silva, um grande defensor da plasticidade portuguesa); percepcionou uma empresa portuguesa rumo ao mar impregnada de filosofia cristã; na viagem da História, a passagem do Antigo Regime, sociedade organizada em torno do religioso, para o anti-clericalismo dos sécs.XVIII e XIX; viu o mar profético de Cristo, do qual saímos ao encontro dos outros; tivemos essa ousadia, corajosos mas humanos; especialmente marianos, “uma devoção nacional”; europeus que devem preservar a cultura que os formou (nem Atenas, nem Roma): o cristianismo da radical igualdade dos seres humanos e da separação entre César e Deus; portugueses religiosos, que certamente compreenderão a beleza do ecumenismo. Nómadas, sentimentais, pouco rigorosos ou pragmáticos, crentes e ousados – Portugal e os Portugueses, uma relação de quem esperamos sempre mais, mas uma relação alma com alma, mar a dentro.

Pedro Seixas Miranda

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