Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

segunda-feira, 12 de abril de 2010

PARE, ESCUTE E OLHE

O documentário Pare, Escute e Olhe, de Jorge Pelicano, que há exactamente 15 dias podemos ver em Vila Real, antes mesmo de se estrear nas restantes salas do país, obra destinada a denunciar o tormentoso percurso por que foi e vai passando a linha (ferroviária) do Tua, e, através desse caminho penoso, mostrar o ostracismo político a que Trás-os-Montes vem sendo votado desde há muito, por diferentes desgovernos nacionais com a ajuda de uns tantos dirigentes regionais/locais, inscreve-se e deve poder ser lido à luz das mais recentes reflexões que o êxito que o género documental vem obtendo à escala global, vem gerando.
Assim, é de enorme utilidade e pertinência, a leitura de O Documentário ou a Desforra de Lumiére, quinto capítulo de O Ecrã Global, a mais recente obra de Gilles Lipovetsky
/Jean Serroy publicada em Portugal (Edições 70).
Vejamos a sistematização aí desenvolvida e confrontemo-la com a obra de Pelicano. Em primeiro lugar, Pare, Escute e Olhe participa da característica da ausência da tradicional “voz off que marcava uma autoridade”, e em certo sentido, “implicava um antigo estilo académico e pedagógico”. Ora, assinalam os ensaístas franceses, “assim recupera-se e prolonga-se o caminho dos grandes criadores do cinema do real que, interrogando a realidade por todos os meios – imagem, som, montagem – nunca confundiam a representação do mundo com uma aula de geografia”.
Um segundo aspecto que me parece comum a muito do género documental que hoje podemos ver nas salas de cinema e que está presente, igualmente, neste filme vencedor no doc Lisboa 2010 é o tom intimista. Neste documentário, esse tom é-nos dado, sobretudo, pelo bloco de apontamentos do autor, registo sensível de prosa poética, destinado a tocar, evidentemente, a emoção do espectador. À função de coordenação/encaixe/coerência da estrutura narrativa – apontamentos curtos, enxutos, directos, em vez da académica voz off – a solução encontrada tem, ainda, a vantagem de se aproximar, de se abeirar do espectador num sussurro enleante.
Em terceiro lugar, a diluição da fronteira realidade/ficção. A pura descrição, anódina, incolor, inodora, objectiva, fria, desaparece. Gostava aqui de dar como exemplo a corrosiva cena de uma habitante, idosa, de uma aldeia transmontana, prejudicada pela ausência do funcionamento da Linha do Tua – cujas sucessivas vagas de encerramento, reatamento, suspensão, reconstrução são verdadeira montanha…russa-transmontana – que estabelecendo diálogo telefónico com vista a obter, junto de alguém amigo, a medicação de que carece, vê surgir, no ecrã, do outro lado da linha, um governante – a ironia, refinada ali, de alguém que o autor denuncia ter esquecido/ignorado/desprezado uma região e seus habitantes ter atendido o telefone e, deste modo, ligado a uma anónima desesperada, lá no inifinito transmontano, temendo pela saúde…Para Lipovetsky/Serroy, “durante muito tempo, o documentário, tal como figurava na primeira parte das sessões de cinema, com uma reportagem sobre a pesca da sardinha ou sobre as danças folclóricas do Tirol (…) limitou-se ao que poderíamos chamar o seu grau zero: o da reportagem, o da descoberta neutra, anónima, ingénua, sem subjectividade, não reivindicando nenhum ponto de vista, a não ser o de quem sabe e que mostra a quem não sabe. Em relação a esta forma primitiva do género, aquilo que os grandes documentaristas introduziram, ao longo de toda a sua história, foi a noção do olhar. Um documentário torna-se, portanto, um olho acrescentado à câmara, uma escolha de ângulo e enquadramento, uma ciência do corte e da montagem que representa o mundo, interrogando-o, mostrando o que está por baixo, por vezes demasiado visível e que um olho comum não vê. O seu olhar é, então, assumidamente artístico”. Se Susan Sontag, em Olhando o sofrimento dos outros, coloca a questão ontológica da fotografia, o que é a foto, para que serve, o que esperamos dela – nomeadamente em contraponto com a pintura – Lipovetsky/Serroy investigam a relação documentário-realidade-verdade. A sua abordagem é a da complexidade e é ela que nos importa na densificação do nosso olhar (desde logo, para Pare, Escute e Olhe): “Não nos iludamos: se sempre houve na ficção elementos de real, houve sempre, igualmente, no documentário, elementos de ficção. Evidentemente que não existem dois cinemas heterogéneos, substancialmente diferentes, porque a única categoria operatória verdadeira é, aqui, a da narrativa. Nenhum filme pode escapar à dimensão primeira, irredutível, da escrita. Simplesmente, o documentário tem a especificidade de contar a realidade”.
Quarta lição a apreender da conceptualização de O Ecrã Global subsumível ao caso concreto: os personagens, ainda que reais personagens, já não são aqueles que faziam as delícias dos vendedores de posters – para afixar no quarto lá de casa ou estampar na próxima t-shirt de Verão. Hoje a estrela é-me próxima, banal, igual a mim. “Agora, a estrela está perto de mim, ela já não é o outro intocável e dissemelhante como eram as estrelas quase divinizadas de Hollywood: Jean-Pascal e não Valentino, Loana e não Greta Garbo”. Se atentarmos em Pare, Escute e Olhe, depararemos com um personagem principal – se escaparmos ao colectivo “povo transmontano” como categoria máxima da película, o que se nos afiguraria politicamente correcto, mas não revelaria parte da estratégia fílmica utilizada – de que nem o nome sabemos. Reformado da CP, espontâneo e genuíno, brincalhão, um cromo – bom – do Portugal transmontano. E porquê esta insistência nos personagens iguais a nós, e não já a fixação nos divinos, imortais de outrora? Aqui, a escrita de O Documentário ou a desforra de Lumiére, parece perder uma das mãos e é sobretudo o que a traço grosso já sublinháramos de Lipovetsky em A Era do Vazio (e que a cores berrantes ressurge no recentíssimo A Cultura-Mundo) que ressalta de novo: “a sociedade do indivíduo extremo criou o desejo de nos encontrarmos e de nos reconhecermos nos espectáculos filmados, de ver de uma outra maneira o que somos e o que vivemos”.
Os quinto e sexto elementos que gostaria de relevar estão intimamente ligados. A militância de que o documentário vive e, simultaneamente, a sua pretensão de desmistificação de um dado objecto de que se ocupa. Pare, Escute e Olhe é um filme declaradamente militante. Em favor do abandonado povo transmontano, contra o despovoamento da região, o esquecimento dos mais frágeis (os mais velhos e os mais pobres…algo que tantas vezes vimos acumulado na mesma pessoa; os que não têm automóvel, nomeadamente) pelo poder político, as promessas múltiplas, repetidas e nunca concretizadas, o provincianismo das elites nacionais (os trinta segundos filmados entre José Sócrates e António Mexia são demolidores…para os próprios, com a frase do primeiro ministro “aqui só falta cimento…” e o seu olhar de auto-comprazimento a ilustrarem como nunca o complexo pombalino e o Portugal dos Pequeninos de que fala Miguel Real em A morte de Portugal), os traidores locais…
Face á opção manutenção da linha do Tua vs Construção de Barragem, o autor assume claramente o lado da barricada: está a favor da manutenção da linha e contra a construção da barragem. Não poupa argumentos e personagens que os defendam. Não se nega, de modo algum, ao autor, como atrás fica dito, a tomada de posição, a subjectividade do olhar, aliás enriquecedor para o documentário e até para o espaço público (latu senso). A questão está em que sendo o documentário tão contundentemente parcial, obnubilando, em boa verdade, quaisquer tipos de argumentos sérios contrários à tese que esgrime, pode colocar em causa a adesão – como parece ser um dos objectivos do autor – de um público exigente que gostaria, também, de ver superada a prova de um contraditório mais claro. Não para equivaler argumentos, não para igualar minutos na controvérsia (á lá ERC); mas para que uma dada posição, o tal olhar singular – eminentemente político – tivesse um respaldo mais robusto. Não me espantou, confesso, a pergunta de Carlos Vaz Marques, no Pessoal e Transmissível, da TSF, a Jorge Pelicano, por eventuais pontos de contacto entre o seu cinema e o de Michael Moore. A apresentação claramente dicotómica – Linha vs Barragem; quase sem espaço para a terceira via da compatibilização de ambas; o maniqueísmo a partir daí; posições de agentes políticos em curtos excertos, passíveis, pois, de manipulação (de contexto);a omissão da perspectiva contrária á que se propugna, eis, pois, um conjunto de traços que poderiam estabelecer pontes – e, diríamos, fragilidades – entre os referidos autores. E, assim, aquilo a que Lipovetsky chama “prémio de satisfação reflexiva”, quer dizer, aquela sensação com que saímos da sala de cinema, aquele bem-estar de superioridade moral e de inteligência, aptos que estamos a desmontar as maiores ignomínias tecidas por trás do palco (da história, da política…) revela-se, por vezes, manto diáfano de fantasia…e simplismo: “o neodocumentário oferece ao seu público uma satisfação particular: a desmistificação, a denúncia das mentiras, o prazer de sair da caverna das ilusões. Preenche a necessidade do indivíduo contemporâneo de se sentir um sujeito livre, pensante e crítico num sistema que o impele a consumir sem parar (…) O perigo, naturalmente, é o de que esta desmistificação seja ela mesma uma mistificação”.
A partir do filme – que, já agora, convém ver – de Jorge Pelicano, fica ainda a interrogação maior, porquê o sucesso do (género) documentário (?), ou melhor, como o documentário nos explica (?), e a proposta de descodificação de Gilles Lipovetsky: “o crescimento do documentário aparece como uma resposta ao desaparecimento das grandes referências colectivas do bem e do mal, do justo e do injusto, da direita e da esquerda, assim como do desaparecimento das grandes visões para o futuro. Sem o lastro de grelhas macroideológicas a apontar o sentido da História, são as «pequenas» histórias, são todas as realidades micro e macro do mundo humano-social que ganham uma nova dignidade. Mas, órfãs das ideologias heróicas, as nossas democracias tornaram-se, ao mesmo tempo, democracias de desorientação, de insegurança e de decepção. Neste contexto de desestabilização das referências e de vazio ideológico, os factos apresentados pelo documentário substituem os sistemas de interpretação global, agora desprovidos de «realidades» imediatas mas fortes, ancoradas numa certa dimensão de factualidade. Os documentários oferecem pequenas ilhas de terra firme e sólida que tanta falta fazem aos nossos contemporâneos. Os filmes do real, tal como proliferam nos ecrãs, têm uma base comum que os torna facilmente ecuménicos. O que os fundamenta é a ideologia dos direitos do homem, alargada aos direitos da terra – protecção das espécies, preservação dos recursos naturais. Cinema de protecção com o qual toda a gente só pode estar de acordo, ele responde á sagração dos direitos do homem assim como a uma insegurança social e ecológica crescente (…) Quando já não há grandes mitos mobilizadores, resta conhecer melhor o presente para rectificar os seus desvios e excessos; quando já não se acredita nas utopias sociais, resta o refúgio num passado imaginário e idealizado; quando já não se espera revolucionar o mundo actual, este é mostrado e auscultado de perto como sendo a única coisa que nos resta para amar, detestar ou corrigir”.
Que o ciclo de cinema documental que a UTAD nos propõe para o início de Maio contemple já este conjunto de reflexões verdadeiramente contemporâneas (Manuel Maria Carrilho, DN, 08/04/10), para que de Vila Real também possa partir um cinema e um documentário cada vez mais exigentes, adultos, inteligentes e belos. E, porventura, um documentário que contemple um minimalismo e uma complexidade que a um tempo evite e a outro desminta, o peso excessivo em nós e no nosso tempo – e em nosso entender, um tanto desproporcionado - e o simplismo que o filósofo francês lhe atribui.


Pedro Seixas Miranda

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