Divulgação informativa e cultural da Escola Secundária/3 Camilo Castelo Branco - Vila Real

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A Desejada

Texto criado, a partir de um conjunto de palavras: Desirée, bebé, expulsão, escravos, morte, casamento, plantação de algodão, preconceito, brancos, amor e discriminação.

Elisabete Simas Coelho


Contrariando as contas e as luas das mulheres da propriedade Whitestone, Savana, nasci antes do tempo, num alarido de águas e gritos. Minha mãe, espantada e exausta, entregou-se às mãos experientes de Rosie, a mais velha das escravas. Foi ela quem me lavou e embrulhou no pano de algodão criado e tecido pelas suas mãos carinhosas. Foi o meu primeiro casulo.

Pela porta entreaberta da barraca de madeira vejo escoar-se o dia. O sol é laranja quente como o de África que nunca vi. Rosie dizia que, a esta hora do dia, o sol se fazia bonito para receber a lua, numa fogueira de paixão. A lua respondia-lhe, fria, ignorando-o. Rosie brincava com as palavras para me ensinar que aqui a explosão é o caminho para a expulsão. E eu não queria sair de Whitestone. Rosie era boa comigo. Cantava para me adormecer e foi minha mãe quando a minha mãe morreu. “Desirée, a tua mamã foi com as borboletas. Está no céu e olhará sempre por ti, bebé.”


Sei que as borboletas são minhas amigas. Vivem em casulos de seda nos cedros vermelhos. Lembro-me de um dia em que estava muito calor. Sentei-me junto ao tronco do cedro grande que fica na margem do Velvet Creak, ao fundo da propriedade. Aninhei-me e adormeci. Quando acordei, as mil pétalas do cedro soltaram-se e voaram no céu limpo de azul. A mamã dizia que as borboletas eram flores com asas de anjo. Agora sei para onde vão. Já as vi no escritório do senhor Whitestone. Na parede, junto da colecção de armaria, são muitas. Todas em fila. Têm um alfinete espetado no peito e, uma vez por semana, eu limpo o pó da sua moldura.

Querida Rosie, onde estás? Quero tanto ouvir as tuas histórias. O senhor Whitestone disse-me que foste visitar uma prima em New Orleans. Sempre disseste que não tinhas família além de nós. Deixa estar. Sei bem que não voltas, tanto como sei que o sol voltará amanhã. Vem procurar o seu irmão algodão. Brilha tão intenso que cegará os nossos olhos negros escravos.

Mais um dia passou, numa sucessão desta morte muda e lenta a que o nosso pastor Alvin Stuart chama vida. Ele jurou-me que há salvação para as almas quebradas pela dor, mas é necessário provar o arrependimento primeiro. Não sei se percebi as suas palavras. Arrepender? Sei apenas que, depois de provar o porto da garrafeira do senhor Whitestone, o pastor Alvin ilumina-se numa irmandade com o ar e a água e a terra. Diz palavras bonitas que aquecem a nossa esperança até acabar o serão.

O vinho deve ser o líquido mágico da comunhão das almas. Limpo o seu vidro frio, mas nunca o provei. Assusta-me. Se tentar este elixir, serei Eva depois da maçã? Mãe-negra que nasceu do nada? Tenho medo que os meus olhos, uma vez abertos, não se fechem mais e estarei condenada a ver para sempre. Prefiro a ignorância sábia e quero a cegueira clara de saber quem sou: negra bonitinha de Whitestone, da propriedade e do dono com o mesmo nome.

Arrefeceu com a noite. Aqui, sentada no chão da cabana, encosto a cabeça à cama dura onde não durmo. Fecho os olhos e ouço o murmúrio da imensidão do campo de algodão. Consigo ouvir o rumor das águas do Velvet Creak, essa nesga de rio onde os escravos lavam as mãos, depois do sol deixar o céu escuro. Quase tão negro como a alma do capataz Jonathan. Que horas serão? Não tenho relógio. Nós, escravos, não temos relógios porque o tempo é o sol e a lua e o frio e o calor. Não tem medida, só sentidos.

O senhor Whitestone tinha um relógio de bolso que veio da Europa, onde não há preconceito. Foi uma prenda de casamento. Era tão dourado e brilhante que desapareceu. A minha mãe foi acusada de o roubar. Bateram-lhe. Ela implorou, disse ao capataz que não sabia de nada. Ele não acreditou. Nesta plantação de algodão só a rama e a alma suja dos brancos reclamam a inocência. Fecharam a minha mãe aqui, nesta cabana onde estou. Ela era fraca. Lembro-me depois do pranto das mulheres e do silêncio dos homens. Por que razão choravam? A mamã parecia dormir. Entre nós escravos não há discriminação. Todos sofrem por igual.

Escureceu tanto. Não se vê já a lua. O silêncio cala tudo lá fora. Ergo-me a custo. O corpo está dorido. Deito-me neste altar onde não durmo. O chão sempre foi a minha cama. Está mais próximo da verdade. Encosto o ouvido e escuto as criaturas da madeira. Gosto de adormecer sobre as tábuas do chão e penso num mundo ao contrário. Por cima de mim haverá mais terra e um casulo de silêncio. Por baixo de mim a voz rouca da Rosie embala-me:

“Eat your soup. Eat your pie. Hush, little baby. Don’t you cry...”

Ouço passos. É ele, o capataz Jonathan. Não perde tempo. Como sempre, arrasta as botas pelo chão. Como sempre, tosse e tacteia pelo quarto até encontrar o meu corpo. Agora começará numa babugem de palavras de amor mastigadas com ódio e saliva azeda. Cerrará os dentes que rangem e rastejará como um verme por mim acima, por dentro de mim. Num abraço que estrangula e sufoca, sintir-lhe-ei o cheiro a suor e a milho verde que se cola à pele. Ficarei muda, hirta, paralisada, mas não já de medo como da primeira vez. Onde estás, Rosie? Tu e a mamã estão a ver-me agora.

Ouço passos. É ele. Não perde tempo. Como sempre, arrasta as botas pelo chão. Tosse e tacteia pelo quarto até encontrar o meu corpo. Fico muda, hirta, paralisada. Ele desliza por mim, numa lentidão cansada. O seu corpo enorme prepara o ritual de pesadelo de todas as noites. Lentamente, agarro no punhal de prata, que tirei da colecção do senhor Whitestone, e que guardei, debaixo do travesseiro, para este dia. Como se adivinhasse o meu gesto, ele ergue o tronco. Com uma força que até então desconhecia em mim, num gesto rápido, desfiro um golpe breve e profundo no pescoço.

Amanhã o sol nascerá e de novo cegará os olhos dos escravos. Feriremos as nossas mãos negras nos espinhos e o algodão será vermelho como o sol do poente. Depois lavaremos as nossas mãos na água escura de Velvet Creek. Ouço a voz da Rosie:

“Eat your soup. Eat your pie. Hush, little Desirée. Don’t you cry...”

1 comentário:

Anónimo disse...

O desenho das montanhas era uma recordação. Daquelas que apenas podemos sonhar: eu lembrava os pastos da ilha verde mas a ilha não era a tua, com os arcos e as grilandas e as casas brancas, faixa azul fazendo de rodapé. Nem as tuas montanhas, altas e seqüenciadas como as costas dum imenso dragão. O mês? Julho, 1987. A praça de Coimbra cegava à hora do chá, fora um verão volcánico. Por acaso vestias azul, eu calças negras e uma superbock. Espero que sejas feliz.