Se as circunstâncias históricas, materiais, técnicas, burocráticas em que teve lugar o extermínio dos judeus estavam já aclaradas – e o livro de Raul Hilberg ocupava, aí, um lugar privilegiado – já o significado ético e político do extermínio, a sua simples compreensão humana, a sua actualidade era (é) algo que permanecia (permanece) em aberto e o que justificou o profundíssimo conjunto de reflexões acerca da natureza e da condição humanas de Giorgio Agambén, intitulado O Que resta de Auschwitz?
Os aliados entraram com as câmaras televisivas nos campos, nos lager, para contar e provar como foi. Não nos pouparam a nenhum pormenor. Mas quando o olhar se fixou num conjunto de deportados que parecia ainda viver, mas verdadeiramente vagueava em pé, como fantasmas, o operador de câmara muda abertamente de enquadramento.
A estes «cadáveres ambulantes», «mortos-vivos», «homens múmia» de que se duvida poder chamar vivos; aos que tinham renunciado a toda a reacção e se convertiam em objectos, despersonalizados, deu-se o nome de “muçulmanos”. Talvez porque no étimo da palavra, muslim, está aquele que se submete incondicionalmente à vontade de Deus. Ora, nem uma pancada, nem uma chamada para a comida, nada movia, nada tocava, nada mexia com os “muçulmanos”, nos campos.
Para Agambén, o “muçulmano” não é apenas, ou nem tanto um limite entre a vida e a morte; assinala, antes, mais do que isso, “o umbral entre o homem e o não homem”. E acrescenta: “há um ponto em que apesar de manter a aparência de homem, o homem deixa de ser humano. Esse ponto é o muçulmano e o campo é o seu lugar por excelência”. Assim, somos colocados perante duas grandíssimas perguntas: o que significa para um homem converter-se em não homem? Existe uma humanidade do homem que se possa distinguir e separar da sua humanidade biológica?
Ao longo de todo o percurso escolar, nunca a figura e, mais do que isso, o verdadeiro estádio – de não retorno – muçulmano, assomou nas aulas de história sobre a matéria. E, no entanto, quer no título de célebre livro de Primo Levi – Se isto é um homem – quer em obras como a Espécie Humana, de Robert Antelme, vemos a questão emergir.
“O paradigma do extermínio que até ao presente orientou de modo exclusivo a interpretação dos campos, importa não ser substituído, mas complementado por outro paradigma que traz uma nova luz sobre o extermínio e, em certo sentido, o torna ainda mais atroz. Antes mesmo de ser o campo da morte, Auschwitz é o lugar de uma experiência todavia impensável [e impensada], na qual, para lá da vida e da morte, o judeu se transforma em muçulmano e o homem em não homem. E nunca compreenderemos Auschwitz se não tivermos compreendido o que é o muçulmano”.
À pergunta “o que significa continuar a ser homem?”, Antelme diz-nos que o que estava em jogo nos campos era uma reivindicação quase biológica de pertencer à espécie humana, o sentido último de pertencer a uma espécie. A negação da qualidade de homem provoca uma reivindicação quase biológica de pertença à espécie humana.
Para Agambén, a própria palavra que normalmente usamos para descrever o extermínio – holocausto – é errada.
Porque emigrando do seu significado original, ele foi passando a ser entendido como “sacrifício supremo, marca de uma entrega total a causas sagradas e superiores”. Neste sentido, estabelecer uma conexão, ainda que longínqua, entre Auschwitz e o sacrifício bíblico, ou entre a morte nas câmaras de gás e a “entrega total com motivos sagrados e superiores não pode deixar de soar a burla”. No entender de Agambén, quem utiliza, pois, este termo – holocausto – dá mostras de ignorância ou insensibilidade (ou ambas).
Há um outro passo desta obra que não esqueceremos: “Os sobreviventes foram piores não apenas em comparação com os melhores [dos que estiveram nos campos], aqueles cujas virtudes os tornavam menos adaptáveis [aos campos], se não também à massa anónima dos tocados [os muçulmanos], aqueles cuja morte não pode ser chamada morte. Porque esta é a específica aporia ética de Auschwitz: o lugar em que não é decente continuar a ser decente, o lugar em que os que acreditavam ter conservado a dignidade e o respeito por si próprios sentem vergonha face aos que a haviam perdido de imediato”.
Não apenas nesta frase vai uma imensa homenagem aos que pereceram – aqueles que por serem tão bons nunca se adaptariam ao campo e que caíram de imediato – como, igualmente, salienta o remorso, o sentimento de culpa que atingiu e levou mesmo ao suicídio muitos dos sobreviventes.
Auschwitz foi muitas vezes chamado “fábrica de cadáveres”: ora, o que sucedia, deste modo, com o que subjaz a tal terminologia, era a supressão da própria morte. Era algo muito mais escandaloso do que a morte: em Auschwitz, não se morria; produziam-se cadáveres. Cadáveres sem morte, não-homens cujo falecimento é aviltado como “produção em série”. De acordo com uma interpretação muito difundida é justamente esta degradação da morte aquilo que constitui o ultraje específico de Auschwitz.
Como com a experiência do “muçulmano”, nas palavras de Levi, a própria moral, a humanidade ela mesma, se colocam em dúvida, como justificar que o grande testemunho que podia ser dado de Auschwitz – o do “muçulmano” – signifique, pois, interrogarmo-nos como pode o não-homem dar testemunho sobre o homem? Como pode ser verdadeiro testemunho aquele que por definição não pode prestar testemunho? Pois bem, interpreta Agambén, o título Se Isto é um homem tem, sem dúvida, este sentido: que o nome homem se aplica, primacialmente, ao não-homem, que o testemunho integral do homem é aquele cuja humanidade foi destruída integralmente. Quer dizer, que o homem é o que pode sobreviver ao homem.
Pedro Seixas Miranda
Os aliados entraram com as câmaras televisivas nos campos, nos lager, para contar e provar como foi. Não nos pouparam a nenhum pormenor. Mas quando o olhar se fixou num conjunto de deportados que parecia ainda viver, mas verdadeiramente vagueava em pé, como fantasmas, o operador de câmara muda abertamente de enquadramento.
A estes «cadáveres ambulantes», «mortos-vivos», «homens múmia» de que se duvida poder chamar vivos; aos que tinham renunciado a toda a reacção e se convertiam em objectos, despersonalizados, deu-se o nome de “muçulmanos”. Talvez porque no étimo da palavra, muslim, está aquele que se submete incondicionalmente à vontade de Deus. Ora, nem uma pancada, nem uma chamada para a comida, nada movia, nada tocava, nada mexia com os “muçulmanos”, nos campos.
Para Agambén, o “muçulmano” não é apenas, ou nem tanto um limite entre a vida e a morte; assinala, antes, mais do que isso, “o umbral entre o homem e o não homem”. E acrescenta: “há um ponto em que apesar de manter a aparência de homem, o homem deixa de ser humano. Esse ponto é o muçulmano e o campo é o seu lugar por excelência”. Assim, somos colocados perante duas grandíssimas perguntas: o que significa para um homem converter-se em não homem? Existe uma humanidade do homem que se possa distinguir e separar da sua humanidade biológica?
Ao longo de todo o percurso escolar, nunca a figura e, mais do que isso, o verdadeiro estádio – de não retorno – muçulmano, assomou nas aulas de história sobre a matéria. E, no entanto, quer no título de célebre livro de Primo Levi – Se isto é um homem – quer em obras como a Espécie Humana, de Robert Antelme, vemos a questão emergir.
“O paradigma do extermínio que até ao presente orientou de modo exclusivo a interpretação dos campos, importa não ser substituído, mas complementado por outro paradigma que traz uma nova luz sobre o extermínio e, em certo sentido, o torna ainda mais atroz. Antes mesmo de ser o campo da morte, Auschwitz é o lugar de uma experiência todavia impensável [e impensada], na qual, para lá da vida e da morte, o judeu se transforma em muçulmano e o homem em não homem. E nunca compreenderemos Auschwitz se não tivermos compreendido o que é o muçulmano”.
À pergunta “o que significa continuar a ser homem?”, Antelme diz-nos que o que estava em jogo nos campos era uma reivindicação quase biológica de pertencer à espécie humana, o sentido último de pertencer a uma espécie. A negação da qualidade de homem provoca uma reivindicação quase biológica de pertença à espécie humana.
Para Agambén, a própria palavra que normalmente usamos para descrever o extermínio – holocausto – é errada.
Porque emigrando do seu significado original, ele foi passando a ser entendido como “sacrifício supremo, marca de uma entrega total a causas sagradas e superiores”. Neste sentido, estabelecer uma conexão, ainda que longínqua, entre Auschwitz e o sacrifício bíblico, ou entre a morte nas câmaras de gás e a “entrega total com motivos sagrados e superiores não pode deixar de soar a burla”. No entender de Agambén, quem utiliza, pois, este termo – holocausto – dá mostras de ignorância ou insensibilidade (ou ambas).
Há um outro passo desta obra que não esqueceremos: “Os sobreviventes foram piores não apenas em comparação com os melhores [dos que estiveram nos campos], aqueles cujas virtudes os tornavam menos adaptáveis [aos campos], se não também à massa anónima dos tocados [os muçulmanos], aqueles cuja morte não pode ser chamada morte. Porque esta é a específica aporia ética de Auschwitz: o lugar em que não é decente continuar a ser decente, o lugar em que os que acreditavam ter conservado a dignidade e o respeito por si próprios sentem vergonha face aos que a haviam perdido de imediato”.
Não apenas nesta frase vai uma imensa homenagem aos que pereceram – aqueles que por serem tão bons nunca se adaptariam ao campo e que caíram de imediato – como, igualmente, salienta o remorso, o sentimento de culpa que atingiu e levou mesmo ao suicídio muitos dos sobreviventes.
Auschwitz foi muitas vezes chamado “fábrica de cadáveres”: ora, o que sucedia, deste modo, com o que subjaz a tal terminologia, era a supressão da própria morte. Era algo muito mais escandaloso do que a morte: em Auschwitz, não se morria; produziam-se cadáveres. Cadáveres sem morte, não-homens cujo falecimento é aviltado como “produção em série”. De acordo com uma interpretação muito difundida é justamente esta degradação da morte aquilo que constitui o ultraje específico de Auschwitz.
Como com a experiência do “muçulmano”, nas palavras de Levi, a própria moral, a humanidade ela mesma, se colocam em dúvida, como justificar que o grande testemunho que podia ser dado de Auschwitz – o do “muçulmano” – signifique, pois, interrogarmo-nos como pode o não-homem dar testemunho sobre o homem? Como pode ser verdadeiro testemunho aquele que por definição não pode prestar testemunho? Pois bem, interpreta Agambén, o título Se Isto é um homem tem, sem dúvida, este sentido: que o nome homem se aplica, primacialmente, ao não-homem, que o testemunho integral do homem é aquele cuja humanidade foi destruída integralmente. Quer dizer, que o homem é o que pode sobreviver ao homem.
Pedro Seixas Miranda
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